Começou ruidoso o grupo de jornalistas que cruzaria trechos do ‘Caminho do Norte’, a versão litorânea do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha.
Ainda apegados ao cotidiano lá atrás, do outro lado do Atlântico, uns seguem aferrados a pendências do trabalho, enquanto outros aceleram o passo e se afastam.
Uns matam saudades, via celular(!), e outros tentam matar a vontade de desligar as vozes que vêm de fora, mais alta que a de dentro, um barulho que pouco combina com aquele caminho histórico de 815 km de extensão, entre o País Basco e a Galícia.
Peregrinos em silêncio cruzam o caminho de “turistas de um dia” que visitam atrações históricas, ao longo do caminho, e se vão, barulhentos.
E a vida nas localidades segue igual.
O trator continua arando a grama, as ovelhas se amontoam em um canto do campo, locais se deslocam de carro para o trabalho e peregrinos recém-iniciados ainda se dispersam com a variedade de cenários.
Gente que vai, gente que vem.
Nunca dá para saber se é a mochila que pesa sob as costas ou se é a alma que vai pesando com pensamentos trazidos de outros endereços. Não é “o que”, é “como”, já diria uma frase pintada em uma pedra, entre Getaria e Zumaia, no País Basco.
Mas o grupo de jornalistas segue ruidoso mesmo assim.

Em um dos nossos delírios de peregrinos de primeira viagem, um rapaz de estatura baixa cruza nosso caminho. Cajado na mão, mochila nas costas, gorro pontiagudo na cabeça e uma bata laranja que se confunde com a calça larga amarela.
Look peregrino perfeito para parte do mal-intencionado grupo de jornalistas dar-lhe um nome: O Duende. Uma das jornalistas até falou do alto número de peregrinos que se pareciam com duendes e cruzavam nossos caminhos.
O apelido lhe caía muito bem e o cenário era perfeito para a criação de seres mágicos: florestas fechadas, trilhas de terra e uma sequência infinita de povoados medievais, onde quase sempre éramos os únicos.
Embora seja tão antigo como o tradicional ‘Caminho Francês’, essa caminhada pela costa tem se popularizado entre os que buscam rotas peregrinas menos frequentadas.
Devagar e com passos focados, O Duende nos ultrapassou e nosso grupo seguiu disperso, antes de se separar, pela última vez.

E quando o caminho lhe escapa dos pés, desviados pela falação de quem ainda está conectado com o mundo exterior, siga o caminho sozinho. Olho o mapa, confiro as placas de orientação e acelero o passo com a intenção de só voltar a vê-los (e ouvi-los) em Mondoñedo, no povoado seguinte.
Em certos trechos do Caminho, quando ladeiras insistem em querer fazer a gente desistir, o cajado vai ficando mais pesado, os pés se arrastam no chão de cascalho e a mochila nas costas parece dobrar de peso.
Sozinho, cruzo um ou dois peregrinos, aceno para um casal de velhinhos que varre o quintal de casa e paro para beber água em uma fonte… ao lado d’O Duende. Envergonhado, cumprimentei e me despedi na mesma velocidade de quem quase se afoga naquela água fresca para sair dali o mais rápido possível.
E já que dizem que por ali “não há um caminho, há caminhos”, o grupo, sem perceber, vai se desfazendo (ou seria o caminho fazendo-os?). Eu na frente, 3 ou 4 mais atrás e duas jornalistas fora de rota, literalmente.

Cheguei primeiro na estrada de asfalto que dava acesso a Mondoñedo, já no trecho final daquele dia, e fui surpreendido com as duas, margeando a via, logo atrás de mim. Gritaram meu nome, vomitaram um sem-fim de reclamações e concluí que, sim, elas tinham se perdido (na conversa e na rota).
A situação foi ficando tensa.
Eu preocupado em ligar para o guia, lá atrás; e quem ficara para trás não sabia onde elas estavam.
Enquanto tentávamos reconstruir a rota perdida, mentalmente, o restante do grupo chegou com um guia de passadas pesadas e um furioso ¿qué pasó?, estampado na cara.
Bateram boca, ali mesmo, no salão apertado do restaurante. Um culpando o outro e o outro culpando um (ou uma, sei lá). Até as bem sinalizadas placas de orientação peregrina foram, injustamente, culpadas.
Na minha ingenuidade de quem queria ver aquilo terminado (e para devolver a paz ao restaurante onde almoçaríamos), me lembrei da parada na fonte.
– “Gente, mas como vocês se perderam? O caminho está bem sinalizado”.
E completei, eufórico como criança que vira seres encantados da floresta:
“Vocês não passaram por um povoadinho medieval que tinha uma fonte, onde o duende tava bebendo água?”
Quem ouviu (e criou) a história do Duende, riu. Mas o resto do grupo que não havia escutado o apelido irônico, entreolhou-se, calou-se e, certamente, se questionou sobre os efeitos de tanta caminhada em jornalistas solitários.
Eu vi duendes, no Caminho de Santiago. De gorro pontiagudo, cajado na mão, mochila nas costas e uma bata laranja que se confundia com a calça larga amarela.
Eu juro.
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Não aguento! adoro a forma como escreve, parece que estou lá, vendo e sentindo, é sempre uma viagem mágica!! kkkk