[crônica] Tarsila, vem pra mata-virgem

O voo da delta ainda taxiava na pista carioca quando o bando de ratas viajeiras começaram a deixar seus quartos.

Em anos de economia favorável, lambuzaram-se em cidade-cassino, postaram textinho pé na areia para descrever praia que fica a três ou quatro fusos daqui e empunharam sacolas lotadas em destinos livres de imposto.

Mas logo veio a pandemia, e o milagre do achamento das terras esquecidas aconteceu. De repente, descobriram o Brasil como se acabassem de descer da nau de Pero Vaz de Caminha.

Bastou um ou outro destino estrangeiro anunciar a retomada, depois de terem feito a lição de casa, para a sensação de “já passou” tomar conta do lado de cá. Como se fizessem favor ao turismo nacional, colocaram o Brasil na capa até que já não pegasse mal estimular turismo do lado de cá, onde, aliás, não se faz turismo, faz-se excursão ou bate-e-volta. Viagem mesmo é pro exterior.

Será mesmo que não tem nenhuma florestinha brasileira para meter na capa? Mês sim, mês não, já estava de bom tamanho. Do tamanho do Brasil.

Uma caverna sequer, um hotel de charme ou um mar turquesa para ser o destaque do mês? Sem falar dos pampas, dos pantanais, das caatingas e do cerrado que, de desgosto, está morrendo.

O mundo inteiro cabe dentro do Brasil, mas a fama fica sempre com o que vem lá de fora.

foto: Eduardo Vessoni

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O mar verdinho é todo nosso, mas dizem que é o “Caribe brasileiro”. Nem a Amazônia, tão única com seus endemismos, escapou de ganhar uma versão caribenha em campanhas que comparam, equivocadamente, os tons dos rios amazônicos com os do mar das Antilhas.

No Brasil cenográfico do faz de conta tem também as versões nacionais da Suíça, da Holanda, de Paris, da Broadway e até de Atenas.

Aliás, fiquei sabendo, recentemente, que a “Atenas brasileira” fica no Centro-Oeste. Já pensou o lobo- guará caminhando entre as colunas do Partenon? Daria uma bela selfie para postar em rede social, acompanhada da legenda “oi, sumido”.

Tô louco para voltar a carimbar um passaporte e dar outro check em mais um país. Mas será que poderíamos arrumar a própria casa e estimular primeiro o turismo interno, quando for seguro viajar?

Como já disse o poeta Sérgio Vaz, num junho agitado de 2013, o “país sofre de ejaculação precoce”.

Se a economia daqui não se reerguer, ninguém vai para lugar nenhum com o passaporte (nem o da PF nem o sanitário) debaixo do braço. Enquanto isso, empresários equilibram pratos e profissionais do turismo relatam dificuldades de sobrevivência (a palavra “fome”, me foi repetida diversas vezes).

“A pandemia acabou, eu tô feliz agora!”, concluiu, feliz e louca, a transeunte que cruzou meu caminho na rua, hoje de manhã, pouco antes deste texto ser publicado, num 23 pandêmico de agosto de dois mil vírus e vinte e um.

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foto: Flaviz Guerra/Creative Commons

Complexo de vira-lata

O termo foi criado pelo escritor Nelson Rodrigues nos anos 50. Mas, sete décadas depois, pouco mudou no grau de inferioridade em que o brasileiro se coloca diante do resto do mundo.

“É como cuspir na própria imagem”, explicou o dramaturgo, quem costumava dizer que “o brasileiro é um narciso às avessas”.

Para convencer que vale a pena fazer turismo por aqui, parece necessário sempre recorrer a imagens do lado de lá para validar nossas opções de turismo. O problema é antigo (e nem Nelson tinha nascido ainda).

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Como em um eterno looping de discursos do passado que se reatualizam em um “museu de grandes novidades”, o Brasil segue de costas para o próprio Brasil, desde tempos coloniais. Marcado por uma tradição eurocêntrica, e posteriormente voltada para os Estados Unidos, o país sempre viu com melhores olhos aquilo que vem do além-mar.

Não quero cuspir na bandeja de nenhum avião que me levou para tantos lugares fascinantes no mundo, mas não adianta recorrer à fitinha do Senhor do Bonfim ou sair por aí repetindo “vamos descobrir o Brasil” se a preocupação ainda forem os futuros protocolos de parques temáticos além fronteiras ou fazer listinha de países que aceitam brasileiros (vacinados ou não). Sem falar dos sommeliers de vacina que se debruçaram sobre cardápio ideológico para escolher nome de imunizante, a fim de atender às exigências sanitárias internacionais.

A essa altura, se for preciso, a gente vira até jacaré para garantir a nossa segurança. Só não dá para seguir vestindo fantasia de cachorro vira-lata.

– Tarsila, vem pra mata-virgem, convidou Mário de Andrade na carta que enviou ao casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, que se deslumbrava na capital da França, em 1923.

“A CUCA” (1924), óleo sobre tela, por Tarsila do Amaral (imagem: tarsiladoamaral.com.br/Reprodução)

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