Poderia ser um livro só para crianças ou jovens interessados no mundo sertanejo, mas esse “brinquedo que dura toda a vida” é para adultos também.
Terra de cabinha: pequeno inventário da vida de meninos e meninas do sertão (editora Peirópolis) é um mergulho profundo num Brasil interior que ainda é visto, equivocadamente, como o cenário árido da seca e da fome.
Esse trabalho sensível da jornalista Gabriela Romeu é um relato de viagem sobre as crianças de um destino serrano que (se) inventam no sertão verde do Cariri, a partir de brincadeiras, lendas e histórias coletadas pela autora em diversas visitas à Chapada do Araripe, no Ceará.
A obra, terceiro lugar do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Didático e Paradidático, é dividida em 13 breves capítulos, cada um introduzido por versos, cuja temática dá o tom da prosa seguinte: das brincadeiras na terra à corrida de jumento, da fabricação caseira de peteca à procura por Maria Fulozinha.
SAIBA MAIS
Cabinha é o diminutivo da expressão nordestina ‘cabra’ (homem), usado para se referir às crianças.
Tem “história verdadeira”, “causo” e “outro tanto de invenção” mas também tem dica para fazer chicote de reisado, folha de campeba que vira escorregador e futebol de botão com vidrinhos de vacina.
Mas Gabriela não escreve apenas sobre brincadeiras no campinho do Crato ou na zona rural do Juazeiro do Norte. A autora contextualiza tudo aquilo com dados sobre a chegada dos indígenas Kariri, a geografia acidentada da Serra do Araripe e dos ‘causos’ de assombração.
Assim como descreve a introdução mágica do artista plástico Gandhy Piorski, o livro é sobre a vida de meninos “logo cedo inseridos na aguda percepção de não se crer só no visto”. No cariri cearense, “árvore é brinquedo”, “menino vira rei” e moleque “pega carona na chuva para brincar com pingos que caem”.
Os textos são acompanhados pelas ilustrações de Sandra Jávera, que nunca esteve no Cariri, mas nos transporta para lá com seus desenhos singelos; e também pela fotografia sensível de Samuel Macedo, cujas cores parecem seguir o padrão dos tons cromáticos dos finais de tarde dourados nas serras rochosas do Nordeste.
O livro também segue sua viagem fora dele, em material audiovisual acessado com QR Codes e conteúdo audiovisual complementar, disponível no site da editora, como canção de reisado e histórias contadas pelos próprios cabinhas, em mini documentários sobre aquela rotina pé na roça.
A Chapada do Araripe, cenário de Terra de Cabinha, fica no limite entre Ceará, Piauí e Pernambuco.
Nessa área de registros geológicos e paleontológicos, tudo virou pedra e “quando o vento assobia entre os paredões, anuncia as histórias de outras eras”, como aquelas da infância que acontece no terreiro, bem na porta de casa (e diante dos olhos do leitor).
Que mágico esse trabalho do Viagem em Pauta, parabéns!