Sobreviventes dos Andes contam como foi acidente, 50 anos depois

A viagem que o turboélice bimotor Fairchild faria entre Montevidéu e Santiago duraria três horas, aproximadamente. Mas os sobreviventes dos Andes só voltariam para casa mais de dois meses depois.

Após decolar da capital uruguaia com 40 passageiros e 5 tripulantes, o jato da Força Aérea do Uruguai perdeu velocidade e se chocou contra montanhas andinas, partindo-se em dois.

A aeronave tinha sido fretada para levar jovens jogadores de rugby do Old Christianss Rugby Club do colégio Stella Maris, escola em Carrasco, bairro de classe média alta em Montevidéu.

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foto: Reprodução/Roy Harley

Aos pés das serras de San Hilario, entre os vulcões Tinguiririca e Sosneado, a quase 4 mil metros de altitude, o F571 caiu às 15h30 no Valle de las Lágrimas, no meio da imensidão andina.

Dos 45 passageiros, apenas 16 sobreviveram. Foram 72 dias sem banho nem troca de roupa, a espera de um resgate que parecia nunca chegar.

Nos dias seguintes, os sobreviventes dormiriam não só com esperança, mas também ao lado da morte. Os mortos dariam vida aos que insistiam em viver.

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foto: Museo Andes 1972

Localizado em Montevidéu, o Museo Andes 1972 é hoje uma emocionante homenagem com fotografias, objetos originais e painéis com detalhes do acidente nos Andes.

Esse espaço de 400 m², inaugurado 40 anos depois da tragédia, guarda também uma estátua dedicada a Sergio Catalán.


VEJA ABAIXO OU NESTE NESTE LINK DETALHES DO ACIDENTE


Depoimento de Roy Harley, um dos 16 sobreviventes dos Andes

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foto: JP Laffont/Reprodução)

[Eduardo Vessoni] Para alguns, como Pedro Algorta, hoje em dia, o acidente é “apenas lembranças”. E para o senhor, o que representa aquela experiência, exatos 50 anos depois?
[Roy Harley] Para mim é um orgulho ser parte desta história. Segundo a National Geographic é a maior história de sobrevivência dos últimos 100 anos, pela quantidade de pessoas que morreram, pela quantidade que se salvaram, pelas condições do lugar onde passamos 72 dias, pelo que tivemos que fazer para nos salvar.

No livro “A Sociedade da Neve”, o senhor diz que gostaria de ter guardado a história entre vocês.
Sim, inicialmente, quis guardar esta história entre os sobreviventes, queria guardá-la como quem guarda algo muito querido, em um cofre. Mas é impossível, a história não nos pertence.

Não somos modelos de nada, somos pessoas que, na nossa juventude, tivemos que viver uma história impressionante de dor, sofrimento, amor, companheirismo, luta e sacrifício, etc etc. Sobrevivemos para poder contar essa história.

Quando o senhor pôde dizer, por fim, que tudo tinha acabado, mesmo já de volta para casa? Acredito que foram muitos anos para processar tudo o que aconteceu.
De jeito nenhum, para mim o fim chegou quando cheguei em Santiago e me encontrei com a minha família. Ela cuidou muito de mim e me resguardou dos flashes da imprensa e todos aqueles ruídos.

Em março 1973, eu já tinha retornado meus estudos e voltado a jogar rugby. Dois anos e meio depois, me casei e comecei minha nova vida familiar.

foto: JP Laffont/Reprodução)

O senhor poderia contar como foram os meses seguintes ao resgate? Como foi sua rotina, o que teve que fazer para se reintegrar à vida normal (se é que alguém volta à “vida normal” depois de una experiencia como aquela).
Eu saí da cordilheira pesando 37 kilos. No Hotel Sheraton [em Santiago] tive uma diarreia muito forte, tive uma arritmia cardíaca e perda de consciência. Acordei na Clínica Santa Maria, cheio de eletrodos e cabos por todos os lados, em um tratamento intensivo.

Não conseguia digerir alimentos que, assim como entravam, saíam. Fiquei 15 dias apenas com soro e potássio. Eu estava novamente isolado da minha gente querida, que me visitava por meia hora por dia.

Um dia uma enfermeira se comoveu comigo e me trouxe um bombom, uma bomba para mim. Quando conto isso para as pessoas, elas me perguntam o que eu fiz com o chocolate e eu digo que comi [o bombom].

Em 1995, visitei o médico que me tratou em Santiago, o Dr. Ricardo Katz, e ele me disse que achou que eu ia morrer e já não sabia como dizer para a minha família que eu ia morrer.

O que foi mais difícil para o senhor nos 72 dias no Valle de las Lágrimas?
Mais do que a fome, o frio e a sede, o mais difícil era a incerteza. Era terrível não saber se íamos estar vivos na manhã seguinte.

Éramos máquinas de sobrevivência, sem pensar muito no que estava acontecendo. A gente tinha que seguir sempre adiante.

Não chorávamos pelos amigos mortos porque isso nos fazia perder a energia. Tínhamos que sobreviver sem nos importar com o que estava acontecendo.

Tintín, Carlitos e o senhor organizaram a primeira expedição depois da famosa avalanche que matou outros sobreviventes. O senhor poderia dar alguns detalhes de como foi?
A gente tinha muito medo de nos afastar. O avião era o refúgio que nos cuidava e protegia das inclemências da montanha. Queimamos as pestanas tratando de saber onde estávamos.

Estar perdido no mundo é uma coisa muito estranha, ainda mais nesses tempos em que estamos sempre conectados.

O sobrevivente Roy Harley, no centro, com um bebê no colo (foto: Arquivo Pessoal)

Em 1995, o senhor esteve na primeira expedição no Valle de la Lágrima, organizada por Daniel Fernández e pelo senhor. Por que voltar para lá depois de 23 anos? Qual foi a sensação de estar ali outra vez?
Me intrigava a ideia de voltar a esse lugar onde tínhamos deixado tanta coisa. Não podíamos fechar os olhos e nunca mais ver aquilo. Eu sempre disse a meus amigos que tínhamos que voltar ali.

Foi algo muito bonito, carregado de emoções, lembranças, cheiros, barulhos, sensações, etc.

Fomos os poucos que foram àquele lugar e passaram a noite ali. Ninguém dormiu. Eram sensações de alegria medo, agradecimento, prazer, tudo misturado. Foi inesquecível.

50 anos depois, de que forma a experiência na “sociedade da neve” ajudou o senhor a enfrentar uma pandemia?
O que mais me ajudou foi o que tínhamos feito há 50 anos, ter formado uma família maravilhosa com a minha esposa, filhos, genros, nora, netos.

De resto, acho que tivemos sorte, temos casa, comida, trabalho e família. Muita gente perdeu a vida, a casa, o trabalho, não tinham comida, etc, etc. Não posso me queixar, apenas agradecer.


Depoimento de Gustavo Zerbino, um dos 16 sobreviventes dos Andes

Gustavo Zerbino, ao lado da mãe, no dia em que foi resgatado (foto: Arquivo Pessoal)

[Eduardo Vessoni] Para alguns, como Pedro Algorta, o acidenteel hoje em dia é “apenas lembranças”, inclusive ele chegou a passar por um longo processo de amnesia. Para o senhor, qual a lembrança mais fresca do que aconteceu há exatos 50 anos?
[Gustavo Zerbino] A lembrança mais fresca que tenho é o amor que vivemos na montanha, tenho gratidão por tudo aquilo. Por isso subi com minha família para agradecer aos meus amigos que descansam ai.

Levei terra e água do Uruguai e água para deixar nas tumbas, um sacerdote rezou uma missa e as nuvens pareciam em forma de anjos. As montanhas estavam em festa para nos receber.

Foi um momento de gratidão e depois dormimos no mesmo lugar onde caiu o avião. É um lugar difícil de dormir porque não há oxigênio. Cantamos no mesmo lugar onde a dor e angústia eram insuportáveis. Foi mágico.

Quão importante foi a organização de uma micro sociedade como a sociedade da neve para a sobrevivência de vocês?
Você tem que assumir o compromisso de aceitar o destino.

É preciso ter em conta que, a quase 4 mil de altitude, quando o mundo inteiro te abandonou, você tem que aceitar que o destino de morrer ou viver depende de você.

Entramos em um modo montanha, tivemos que nos unir.

O mundo diz que foi uma tragédia, um milagre. Mas era amor, uma amizade que tivemos que construir em uma sociedade solidária onde as regras e normas apareciam por necessidade.

Vivíamos no caos total, rodeados pela morte. Viver uma hora a mais era um loucura.

Nosso único objetivo era viver, fazíamos o que era preciso para transformar os problemas em oportunidade para viver.

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foto: Arquivo Pessoal

Quando o senhor pôde, por fim, dizer que tudo tinha acabado?
Pelo contrário, quando voltei ao mundo que vivemos, fiz uma grande esforço para não esquecer o que eu tinha vivido e aprendido no vale.

Eu revivo aquilo no coração como uma lembrança, como uma experiência de andar de bicicleta depois de muitos anos sem praticar.

Subimos, caímos, mas quando deixamos o medo, conseguimos o equilíbrio outra vez. Conforme avançamos, deixamos de cair e voltamos a avançar. A vida é isso.

A diferença entre o fracasso e o sucesso é como você direciona a sua energia. Nosso único objetivo era viver mais um segundo.

Tivemos que escolher entre morrer ou viver. E escolhemos a vida.

Na montanha, vivíamos cada dia como se fosse o último, desfrutávamos plenamente, apesar da dor e da esperança, fomos felizes plenamente porque conseguíamos expandir o umbral da dor, do medo.

No livro “A Sociedade da Neve”, o autor diz que o senhor era um dos talentos na terapia do humor. Como manter o humor em uma situação tão extrema como aquela?
A única coisa séria da vida é o senso de humor. No momento mais trágico, a catarse do riso é o que permite atravessar dignamente, sem traumas.

Saber rir de si mesmo e dos outros é algo que te permite atravessar aquilo dignamente, era um humor duríssimo, era humor ácido, era transformar aquilo em comédia.

De manhã, pedíamos para Javier, o único dos sobreviventes que já morreu, caminhar sobre o gelo e todos nós apostávamos em que momento ele ia escorregar. E não parávamos de rir. Não riam porque me dói muito, ele pedia.

Javier se deu conta depois que isso nos fazia feliz e todo dia repetia [o escorregão] para nos alegrar. Era o sacrifício, como de um palhaço, para dar alegria para seus companheiros de viagem.


Como foi a experiência de ser forçado a atuar como médico?
Creio que temos dentro de nós toda informação desde que o homem existe, vamos acumulando essas informações.

Nada me forçou a ser médico, era a vontade de ajudar quem estava sofrendo, eu não sabia o que fazer, mas eu confiava no que minha mente e minha mão estava fazendo. Como no rugby, tinha lugar para todos, gordo, magro, alto ou baixo.

Cada um tinha uma função. Cada um com sua ignorância se ocupou de fazer um quadro mais bonito. Com a morte pintamos um desenho de vida.

A única maneira de sobreviver era estar perfeitamente bem, embora a mente te dissesse o contrário, é contar com o máximo do seu potencial físico e mental, aprendemos a expandir essa energia, quando vem o medo você contrai os músclos e você se angustia ainda mais

Hoje há uma data anual em que todos os sobreviventes se encontram. Como é?
Há muitas datas. A primeira é na missa de 13 de outubro, na igreja de Stella Maris, em Carrasco, todos os anos. No dia 29 de outubro tem outra missa na mesma igreja.

No dia 22 ou 23 de dezembro, se faz uma festa onde todos vão com a família para diferentes lugares, nas casas deles, em algum salão. Este ano, a missa de 13 de outubro vai ser no Old Christianss Rugby Club do colégio Stella Maris e vamos jogar uma partida de rugby pelos 50 anos.

Voltamos 16 [sobreviventes] e hoje somos mais de 150 pessoas que, de alguma forma, também viveram aquela experiência.

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20 Comentários

  1. Lembro bem, como se fosse hoje, desse acidente que chocou o mundo e a América do Sul, pelo fato de terem acabado sendo forçados a Comer Carne Humana, de seus próprios companheiros de clube e de time…!
    Na época não cheguei a entender, mas hoje, mais velho, constato que aquela foi a única forma de sobrevivência achada pelos amigos que foram orientados por um amigo do grupo que cursava Medicina!
    Parabéns pela sua coragem em divulgar sua triste e chocante “Passagem pelos Andes”…!

    • Deus abençoe essas pessoas tão Especiais para. Assim esse filme no cinema, eu era jovem na época. Meu Deus misericórdia misericórdia.

  2. Só Deus para fazer os sobreviventes,se controlar , tantos anos se passaram e ainda hoje sinto como se fosse um membro de minha família.

  3. Li o Livro “Os Sobreviventes” de Pierre Paul Redd, vi os Filmes VIVOS
    e Sociedade na Neve, nunca vou esquecer,
    que DEUS esteve presente no Vale das Lágrimas.!

  4. Essa história é surpreende, e sobrenatural a presença de Deus com eles o tempo todo, dando motivação para não parar e continuar. Eu vi o filme e estou lendo esses depoimentos, com vontade de saber mais da sobrevivência deles. São especiais demais!!

  5. Fantástico!
    Recentemente li o livro do Nando Parrado, que traz muito esclarecimento de alguns detalhes importantes. Gostaria muito de conversar com um deles, em especial Roberto Canessa, que tem a minha idade e mesma profissão.

  6. Descobri a história quando tinha 16 anos e comprei o livro de Piers Paul Read,sobre o fato . Vi o filme ‘Sobreviventes dos Andes’ da década de 1970 no cinema (deve ter no YouTube, filme mexicano), e conheci pessoalmente Ramón Sabella, também no final dos anos 70. Mais além assiti ao filme ‘Vivos’ e uma matéria no Fantástico mostrou entrevista com Álvaro Mangino, outro sobrevivente. Ele morou no Rio de Janeiro e também em Porto Alegre. Há também um documentário sobre o que passaram, se não me engano na History, e tudo se encontra no YouTube. Soube que haverá um novo filme para a Netflix, mas não sei quando chegará nessa plataforma de streaming. Quase todos eles escreveram livros sobre suas experiênicas. Mas além do livro de Read, tem o livro de Nando Parrado e o Sociedade da Neve, que na minha opinião é o melhor por abordar a experiência sobre a visão de cada um dos sobreviventes; e também esse documentário sobre este livro se encontra no YouYube.

  7. Tinha 17 anos quando aconteceu e acompanhei dia a dia pelos jornais, a busca pelo avião. Até vidente participou sem sucesso. As buscas foram encerradas. Mas dias após, a notícia milagrosa que dois deles apareceram numa fazenda do Chile. Daí o resgate e então as primeiras notícias por eles contadas dos momentos passados e como conseguiram se alimentar o que causou comoção.
    Tenho vivo ma minha lembrança todos esses momentos dessa história monumental. Os nomes Canessa, Parrado e Roy permanecem em minha memória fortemente. O livro Os sobrevivente dos Andes que eles fizeram aumentou minha atração. E sempre mantive a vontade, e espero ainda fazer, de ir a Montevideu para prestar uma homenagem particular e emocional a esses jovens que participaram , com a vida e a morte, desse acontecimento tão tocante e extraordinário. Minha saudação a todos os sobreviventes e a todos os não sobreviventes que devem viver fortemente nas mentes e corações dos primeiros.

  8. Tinha 6 anos qua do aconteceu, vi esse filme há muitos anos atrás acho q tinha 20 anos e agora tenho 57 e ainda me choca. Tenho muita empatia pelas pessoas e sobreviventes. Com certeza faria a mesma coisa q eles pra sobreviver. Para os sobreviventes e familiares, um feliz ano novo.

  9. Essa história e impactante a qual demonstra um milagre terem sobrevivido por tanto tempo em face do ambiente hostil com fome, frio intenso e avalanches.

  10. Nasci dois anos depois. Assisti o primeiro filme sobre o acidente e agora fomos brindados com o sociedade da neve. Sei que foram vocês os 16 quem sobreviveram, mas é como se nós também sobrevivemos através de vocês. É impossível não chorar, sentir e torcer durante o filme.

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