Conheça a viajante que vai para países onde ninguém quer ir

Se o biográfico ‘Tetris’ é uma espécie de suspense de espionagem da Guerra Fria, onde blocos caindo são a metáfora do fim da União Soviética, o livro ‘A Fronteira’ vai na direção oposta.

Lançado recentemente no Brasil pela editora Âyiné, o novo livro da norueguesa Erika Fatland é uma viagem pelos mais de 60 mil quilômetros de fronteiras que a Rússia divide com nações invocadas como Coreia do Norte, Cazaquistão e Belarus.

É como estar e não estar, ao mesmo tempo, em território russo.


Essa antropóloga e jornalista é daquelas viajantes com disposição para ir onde muita gente não iria. Isso não quer dizer que seus relatos sejam sobre viagens de férias, seus olhos apurados sempre levam a autora a percorrer um mundo ao redor que não passa imperceptível.

“Transpor uma fronteira é uma das coisas mais fascinantes que existem. Geograficamente falando, o deslocamento é mínimo, quase microscópio”, escreve sobre a fronteira entre a China e o Cazaquistão, duas das nações citadas no livro.

Para contar o que viu do lado de lá da fronteira, Erika passou por 14 países e três repúblicas separatistas, entre os extremos sudeste e noroeste da Rússia.

Erika Fatland no Turcomenistão (foto: Arquivo Pessoal)

Fronteiras

Para Erika Fatland, chamar o planeta de “Terra” é tão enganoso quanto chamar a maior ilha do mundo de “Terra Verde”, como é conhecida a Groenlândia em norueguês. Assim como é também demasiado simples achar que a Rússia é um só país.

Aliás, ‘A Fronteira’ deveria se chamar ‘As Fronteiras’, tamanha é a variedade de mundos do lado de lá do limite com a Rússia.

Em seu mais novo livro, Erika investiga a influência que a Rússia ainda tem sobre nações vizinhas, reconhecidas mundialmente ou não, como a China, Mongólia, Ucrânia, Azerbaijão, além de países bálticos e escandinavos.

Não se trata de um livro especificamente sobre a Rússia, mas como o maior país do mundo altera e alterou a vida das pessoas em áreas invadidas ou em fronteiras, afetando assim a geopolítica mundial.

Com “as marcas indeléveis que a Rússia deixava ao redor”, Erika viajou por meses sempre com a Rússia ali do outro lado, a poucos quilômetros de distância. Pegou avião doméstico na Coreia do Norte, trem na China e sabe-se lá o que no Cazaquistão.

Parque de diversão abandonado em Pripyat, no norte da Ucrânia (foto: Arquivo Pessoal)

“Nenhum dos lugares que visitei estava a salvo de traumas ou cicatrizes em função de sua vizinhança com a Rússia. Sobretudo povos e etnias minoritárias”, define.

É livro de viagem. Mas é também livro de História e de histórias de gente que ainda resiste e insiste em viver em terras distantes de fronteiras elásticas que se movem como “dunas sem barreiras”, nas palavras de Erika.

Para cada um dos relatos, a autora abre uma gaveta com dados históricos que contextualizam as relações entre aqueles países, como o avião que o Partido Comunista Soviético doou para Kim Il-sung, ex-líder norte-coreano, discorrendo assim sobre a relação entre a Coreia do Norte e a então União Soviética.


Aliás, para Erika, a Coreia do Norte foi o país mais difícil de conhecer durante a preparação para seu novo livro, sobretudo por conta da dificuldade de ”penetrar além da superfície”. Era como estar em um zoológico de humanos protegidos do resto do mundo.

Isso porque ainda nem chegamos em bizarrices norte-coreanas como proibições do tipo mascar chiclete e colocar óculos de sol; atos considerados desrespeitosos como cruzar os braços e amarrar suéter na cintura; e o surreal Museu dos Presentes , um acervo de 200 mil objetos divididos em caixas de vidro em 150 salas.

A autora conta também sobre a estratégia da fechada Coreia do Norte para manter o visitante estrangeiro sob controle o tempo todo. “Nenhum horário vago. Nada de tempo livre. Nada de pausas. Uma verdadeira maratona”, descreve sobre sua cronometrada visita de cinco dias.

“Como é viver tão perto da Rússia?”

Essa foi uma das perguntas que Erika mais fez ao longo de sua extensa viagem bordeando o país.

“A União Soviética ainda não é história, ela sobrevive na mente das pessoas”, como definiu um dos entrevistados durante a viagem da autora.

Não só na mente, mas no dia a dia daquela gente.

Erika no Quirguistão (foto: Arquivo Pessoal)

Assim como em outras nações de passado soviético, a autora viu também as contradições, como em Sukhumi, capital da Abecásia, região separatista no Cáucaso, onde ruínas em ruas “sinistramente desertas” dividem espaço com lojas anunciando produtos Apple, apesar das prateleiras vazias.

Abecásia, vejam só, é reconhecida apenas pelo trio da pesada formado por Rússia, Nicarágua e Venezuela. “Para o resto do mundo, ainda é território georgiano”, completa a autora.

No último terço do livro, um dos mais tocantes, os detalhes de seus deslocamentos dão lugar a uma sequência de encontros e entrevistas com figuras ligadas à história e à política da região, como a de Andreis Ierages, enviado para a Sibéria, aos 12 anos de idade, para acompanhar o pai, preso político por 10 anos.

‘A Fronteira’ da antropóloga social Erika Fatland prende o leitor em cada uma de suas quase 700 páginas, porém sem o risco de não poder voltar para casa.

VEJA FOTOS

Mais isso não é tudo

Vizinha da Rússia, a norueguesa Erika Fatland estudou russo na Universidade de Copenhagen, na Dinamarca, e com um professor particular em Odessa, na Ucrânia.

Mas aquilo não foi suficiente.

Essa antropóloga sempre se interessou pelo que havia acontecido com as nações que (des)apareceram após o fim da União Soviética, em dezembro de 1991, e quais vestígios permanecem até hoje.

Em Semipalatinsk, no Cazaquistão, Erika visitou os bustos de Lênin (foto: Arquivo Pessoal)

Sua primeira publicação sobre o assunto é o livro-reportagem “Sovietistão”, também publicado em português pela editora Âyiné, um relato de sua viagem de cinco meses no Turcomenistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão.

Apesar da experiência por nações carrancudas da Ásia Central, Erika relatou para o jornalista Eduardo Vessoni que se sentiu segura viajando sozinha.

“A maioria dos países por onde passei são ditaduras ou regimes muito autoritários. Ditaduras são provavelmente os países mais seguros do mundo”, garante Erika.

Entre os países visitados, a escritora destaca o Turcomenistão, “até o momento, o país mais estranho que já visitei”, cujas particularidades incluem o título “a cidade do mundo com mais mármore por m²”, como o Guinness World Records define a capital Ashgabat.


SAIBA MAIS

“A Fronteira – Uma viagem em torno da Rússia”
por Erika Fatland
tradução: Leonardo Pinto Silva
preço: R$ 159,90

www.ayine.com.br


“Sovietistão”
por Erika Fatland
tradução: Leonardo Pinto Silva
preço: R$ 119,90

www.ayine.com.br

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