Endurance: a viagem mais aterrorizante na Antártica


No mundo das viagens, tem louco para tudo. E não é de hoje.

Meses antes do início da 1ª Guerra Mundial, em 1914, Ernest Shackleton se preparava para aquela que ficaria conhecida como a última grande viagem da Era dos Descobrimentos.

A Expedição Transantártica Imperial deveria quebrar recordes, mas esse explorador irlandês não esperava que a viagem com seu navio a vapor Endurance chegaria ao fim, bem antes de seus homens alcançarem terras geladas do extremo sul do planeta.

foto: Domínio Público

Presos por oito gélidos meses, a tripulação abandonaria a embarcação, em outubro de 1915. O último resgate só aconteceria em agosto do ano seguinte, 10 meses depois.

Nos meses seguintes, os 28 homens embarcados viveriam de esperanças e, até hoje, são lembrados por uma das mais impressionantes histórias de sobrevivência. Ao comandar uma viagem fracassada até o fim, Shackleton se tornaria um exemplo de líder de sucesso.


O início

Após perder para o norueguês Roald Amundsen o título de primeiro explorador a chegar ao Polo Sul, em 1911, Shackleton decidiu fazer diferente.

Pela primeira vez na história da Humanidade, o explorador quis cruzar a Antártica de ponta a ponta, entre o mar de Weddell e o Polo Sul. Sim, a pé e sob uma temperatura que chegava fácil aos -25 ºC.

Porém, o líder da expedição não contava com uma virada no tempo que causaria a movimentação de imensas placas de gelo, que não só impediriam a continuidade da viagem como também consumiriam, literalmente, seu navio exclusivo para travessias polares.

Começava então o pior da experiência (e o melhor da história).

Vista noturna do Endurance, no Mar de Wedell (foto: Domínio Público)

A expedição entre a Inglaterra e a Antártica começou em Londres no 1º de agosto de 1914 e seguiu sem grandes novidades até Buenos Aires, de onde zarpou em 26 de outubro. O último porto seguro seria a Geórgia do Sul, ilha britânica ultramarina, entre as Malvinas e Sandwich do Sul, no Atlântico.

Dali, a viagem foi sendo alterada por imensos blocos compactos de gelo que começaram a reduzir a velocidade do Endurance, que via imensos icebergs de mais de 60 metros de altura.

A luz branca era cegadora e o horizonte causava miragens que confundiam navegadores experientes. Mas, a tripulação não estava sozinha. Ou, pelo menos, não deveria.

O Aurora era o outro navio que deveria seguir pelo lado oposto da Antártica, no mar de Ross, preparando os depósitos de suprimentos para os homens que, supostamente, chegariam pelo lado norte do Continente Branco.

Porém, após uma tempestade, a embarcação ficou à deriva, entre 12 de março e 7 maio de 1915, e só chegou à Nova Zelândia, em abril do ano seguinte.

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Enxugando gelo

No dia 20 de janeiro do ano seguinte, e a apenas 160 km da Antártica, o Endurance estava, completamente, impedido de seguir viagem.

Segundo relatos do próprio Shackleton em seu diário, embora as caldeiras ainda permanecessem ligadas por mais sete dias, era um luxo desnecessário continuar gastando combustível e carvão armazenados.

Durante 48 horas sem descanso, a tripulação trabalhou então na retirada do gelo que impedia o barco de seguir viagem. Insistentes, aqueles homens esperançosos não poderiam imaginar que ficariam presos ali por sete meses, até a primavera seguinte.

foto: Domínio Público

No final de fevereiro de 1915, a rotina a bordo seria abandonada de vez. Como alternativa, foram organizados concertos de gramofone, partidas de futebol, campeonato de corte de cabelo e corridas de cachorros.

O tempo ia passando e a temperatura, lá fora, despencando.

A “batalha de gigantes”, na definição do líder da expedição, começou quando o inverno chegou: temperaturas a -30 °C, dias sem luz natural e cachorros mortos por parasitas no estômago. Sobrou até para as focas antárticas que, devido à escassez dos recursos da expedição, foram usadas para garantir combustível e alimentos.


Inferno gelado na Antártica

O que já estava ruim ficou pior.

Com a pressão das placas de gelo sobre a estrutura da embarcação, a madeira do Endurance começou a ranger, em um som estridente provocado por pedaços do chão que se dobravam para cima, antes de saltarem no ar.

No congelante e frustrante 27 de outubro de 1915, a -18 °C, Shackleton ordenou o abandono total da embarcação agonizante. O afundamento total do Endurance aconteceria quase um mês depois, no dia 21 de novembro.

O grupo seguiu então por terra e em improvisadas embarcações até a área mais próxima, a ilha Paulet. Sobre pedaços flutuantes e instáveis de gelo, a expedição passou os dois meses seguintes sobre um banco de gelo mais sólido, que ficaria conhecido como Ocean Camp.

E, desde então, a vida daqueles homens viraria um inferno gelado: caminhadas com gelo até os joelhos, comidas em pedaços de madeira que serviam de prato, líquidos bebidos em tampas de latas, e pele de pinguim e gordura de foca usados para fazer funcionar o fogão adaptado.

Em dezembro daquele mesmo ano, Shackleton tentou, sem sucesso, aproximar a tripulação à Ilha Paulet e conduziu seus homens para o oeste, em uma perigosa caminhada noturna que durou sete dias seguidos e sob temperaturas baixas.

foto: Domínio Público

No novo acampamento Patience Camp, uma outra placa de gelo encontrada para abrigo, a equipe ficou três meses e meio. Foi naquele momento que os cachorros começaram a ser sacrificados para compensar a falta de comida.

No arquipélago das ilhas Shetland do Sul, no oceano Antártico, a Ilha Elefante era a esperança seguinte, a 160 km dali e a sete dias de remadas.

Em abril de 1916, seis homens saíram no James Caird, um bote de sete metros de comprimento que seguiria para pedir socorro na Geórgia do Sul. Pela primeira vez, a expedição se dividia.

Constantemente molhados, durante os 17 dias seguintes de navegação, os navegadores não tiveram um minuto sequer de descanso. A bordo não se via o horizonte por conta de ondas imensas e a espuma da água congelava e fazia peso sobre o barco frágil.

Em 10 de maio de 1916, Shackleton e outros cinco homens que o acompanharam finalizavam, na Geórgia do Sul, uma das mais perigosas viagens marítimas da história.

Mas o trabalho não terminava ali.


O resgate de quatro meses

Apesar de estarem, por fim, em terra firma, ainda seria preciso encarar uma caminhada puxada pelo interior da Geórgia do Sul, já que os conhecidos postos baleeiros se encontravam do outro lado da ilha, após um labirinto de caminhos gelados que seriam explorados por humanos pela primeira vez.

O grupo chegou ao Porto de Stromness, no dia 20 de maio, quase dois anos depois do Endurance deixar a Inglaterra.

Parecia tudo finalizado. Mas e os outros 22 tripulantes na Ilha Elefante?

foto: Domínio Público

O resgate demoraria ainda dez semanas, após três tentativas frustradas, devido à falta de barcos adequados para enfrentar aquelas águas furiosas.

Já sem esperanças, aqueles homens improvisaram abrigo em botes virados para baixo, até serem resgatados pelo rebocador chileno Yelcho e pelo baleeiro britânico Southern Sky, no dia 30 de agosto de 1916. A tripulação completa desembarcou em Punta Arenas, no Chile, no dia 3 de setembro, sem que nenhuma morte fosse registrada.

Curiosamente, Shackleton voltou à Geórgia do Sul, cinco anos depois, onde morreu vítima de um ataque cardíaco. A pedido da esposa, Emily Dorman, o corpo do líder foi enterrado ali mesmo.

Ernest_Henry_Shackleton
Ernest Shackleton (foto: Domínio Público)

Os números da viagem

⇒ O Endurance, feito com madeiras de pinho e carvalho, custou £14.000 e o valor foi dividido entre apoiadores de países como Austrália, Nova Zelândia, China e Japão, além do apoio do governo britânico.

⇒ A tripulação contava também com 69 cachorros canadenses para puxar trenós em explorações terrestres, na Antártica. Mais tarde, nos momentos mais críticos, os animais serviriam de comida.

⇒ No dia da parada total do Endurance, a temperatura do lado de fora era de -28 °C, em pleno verão antártico.

⇒ No período mais crítico, cada homem tinha direito a 220 gramas de carne de foca e uma pequena dose de chá, no café da manhã.

Passagem de Drake (foto: Creative Commons)

⇒ O pequeno grupo que conseguiu chegar à Geórgia do Sul teve que caminhar por 36 horas seguidas até uma estação baleeira.

⇒ Em 1578, Francis Drake foi além e entrou no Pacífico, chegando ao Cabo Horn para se tornar, na época, o homem a chegar mais ao sul do planeta. Drake acabara de avistar o imenso mar agitado que forma o corredor oceânico que liga a América do Sul à Antártica, a temida Passagem de Drake.

⇒ O capítulo mais importante sobre viagens pela Antártica foi protagonizado pelo inglês James Cook, quem cruzou o Círculo Polar Antártico, em janeiro de 1773, chegando bem perto do Continente Branco, sem nunca ter desembarcado.

⇒ Porém, Fernão de Magalhães é considerado o primeiro homem a comandar uma expedição ao extremo sul das América, em 1520, e também quem descobriu o estreito que leva hoje seu nome.

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Enfim, o Endurance

Após 107 anos, por fim, o lendário Endurance teve sua localização encontrada.

Após mais de duas semanas de buscas, a complexa operação, um dos mais ambiciosos projetos de transmissão de dados na região, encontrou o naufrágio intacto e na vertical, a 3.008 metros de profundidade, no mar de Weddell, no oceano antártico.

Um dos registros mais impactantes da descoberta é o nome do Endurance que pode ser visto, claramente, na popa abaixo da grinalda, corrimão em torno da área do convés, e sobre uma estrela de cinco pontas.

foto: Falklands Maritime Heritage Trust e National Geographic Caption

Inicialmente programado para uma viagem de 35 dias, o projeto foi realizado a bordo do quebra-gelo SA Agulhas II, um potente navio polar de 134 metros, construído na Finlândia e capaz de forçar a passagem em blocos de gelo de até um metro de espessura.

Embora as pesquisas continuem, nada será tocado ou retirado desse Sítio Histórico e Monumento, de acordo com o Tratado da Antártica.

Para garantir o desafio, foram usados Veículos Submarinos Autônomos (AUVs) feitos na Suécia, exclusivamente, para a missão de 2022. Chamados de Sabertooths, esses robôs aquáticos são equipados com câmeras de alta definição e sonar de varredura lateral, capazes de enviar à superfície informações captadas a até quatro mil metros de profundidade, em tempo real.

Sabertooth (foto: SAAB/Divulgação)

De acordo com John Shears, Líder de Expedição, a descoberta do Endurance é um marco na história polar e de um alcance sem precedentes, com transmissão ao vivo a bordo.

“Que novas gerações de todo o mundo se envolvam com o Endurance22 e se inspirem nas incríveis histórias da exploração polar”, declarou Shears, em nota divulgada no site do projeto.

“De longe, este é o melhor naufrágio de madeira que eu já vi”, descreveu Mensun Bound, Diretor de Exploração da expedição Endurance22, que dedicou o achado a Frank Worsley, capitão da expedição original, cujos detalhados registros da época foram inestimáveis para encontrar o famoso navio comandado por Shackleton.

A busca do naufrágio mais desafiador da História foi organizada e financiada pela Falklands Maritime Heritage Trust (FMHT), que saiu da Cidade do Cabo, na África do Sul, no último dia 5 de fevereiro, em direção à Antártica.

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