Dias antes de morrer, em meio às cinzas de um pós carnaval de 1945, Mário de Andrade finalizou sua última obra: ‘Lira Paulistana’.
Já sem eu, aquele “espírito cansado” arrastando-se “em marchas fúnebres” foi se deixando espalhar por São Paulo, sem saber para onde as águas do Tietê queriam levá-lo.
Os pés, deixou na rua Aurora do começo da vida inteira; a cabeça foi deixada na Morada do Coração Perdido, seu endereço seguro (e catalogado na Barra Funda); e o sexo, no Largo do Paiçandu, onde o poeta se viu nu.
Para celebrar os 130 anos do nascimento de um dos maiores escritores brasileiros, o Viagem em Pauta relembra as viagens desse anti viajante declarado que, na medida do possível (e da vontade), garimpou o Brasil, (re)descobriu o país e o colocou diante do espelho para conhecer aquilo que já tínhamos, mas não sabíamos.
“Eu, ninguém precisou de me vir dizer que o Brasil era interessante”, avisou num final do mesmo ano de 1924 em que os modernistas descobriram o próprio país, nas Cidades Históricas de Minas Gerais.
As viagens de Mário de Andrade
Doenças eram algumas das fragilidades de Mário de Andrade. Quando não estava doente, o poeta passava a semana esperando… doença.
Mário dizia se cansar com a doença e, quando se cansava, viajava. E, ao viajar, se curava.
Apesar das angústias de deixar seu mundo-casa, na rua Lopes Chaves 108, no bairro paulistano da Barra Funda, suas viagens eram não só uma busca constante por conhecimento, mas também de cura.
Águas de Lindoia, Santos e Araxá eram daqueles destinos que traziam seus dias de volta.
Araraquara era outro daqueles lugares curadores, onde não só finalizou seu obra mestra, mas também passou um tempo desarvorado, depois da morte de Renato, o irmão mais novo que, aos 14 anos, fora vítima de um acidente num jogo de futebol, em 1913.
– “Não trabalho, não penso, nada” – escreveu Mário com as mãos trêmulas e já convencido de que ser pianista seria sonho distante.
“Ai que preguiça!”
Porém, as suas duas únicas viagens mais longas, daquelas cheias de saudades pauliceias que pesavam as bagagens, foram para destinos distantes do Brasil. Nem Paris nem os States, apesar da insistência dos convites teimosos, veriam o modernista por ali.
A primeira delas foi entre maio e agosto de 1927, quando Mário embarcou para a Amazônia, numa viagem cheia de sonhos, floresta e protocolos oficiais, ao lado da mecenas Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida e a filha de Tarsila do Amaral, a Dulce.
A viagem de trem até o Rio de Janeiro, precedida de um sem-fim de arrependimentos, seguiu marítima pelo Nordeste, foz do Amazonas, Belém, Santarém, Parintins, Itacoatiara, Manaus e Manacapuru.
No roteiro do viajante, num prefácio póstumo de um livro que não chegou a publicar, o “turista aprendiz” resumiu a viagem assim: “Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”.
O que se veria dali para frente era vida inédita (para Mário e para o Brasil).
Tudo era tamanho que não dava para ver e, mesmo vendo, nada do que se via cabia nos olhos. Numa época em que as ruas eram líquidas, a viagem foi em meio a águas e mais águas que, mais à frente, se encontrava com outro tanto de água.
Foi nesse mesmo roteiro que Mário fez sua única viagem em outro país: Iquitos, na Amazônia peruana, e um bocadinho de Bolívia.
– “Que bela. Mas voltemos ao Brasil”, finalizou.
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Trocando as enchentes pela seca, segunda e última longa viagem de Mário foi no ano seguinte, entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929, quando embarcou no vapor Manaus, na Baía de Guanabara, em direção ao Nordeste.
Foram três meses em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, em busca de chegança, reisado, bumba-meu-boi e pastoril.
– “Grandes projetos pra lá, estudo sério de folclore musical”, prometeu para Augusto Meyer, um mês antes de embarcar.
Minas Gerais era outro daqueles lugares que coincidiam com Mário.
A primeira vez foi em 1919, aos 26 anos, numa visita apressada até Mariana para conhecer Alphonsus de Guimaraens, pseudônimo do poeta Afonso Henrique da Costa Guimarães.
Cinco anos mais tarde, Mário voltou a Minas acompanhado por uma trupe formada por nomes como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Dona Olívia e o franco-suíço Blaise Cendrars, que precisou vir lá do outro lado do Atlântico para mostrar o que o Brasil tinha.
Não é à toa que Oswald chamaria aquilo tudo de a “viagem de descoberta do Brasil”, um roteiro que passaria a Semana Santa de 1924 em São João del Rei e seguiria por outras mineirices como São José d’El Rei (mais tarde, mudado para um “odontológico Tiradentes), Ouro Preto, Mariana e Congonhas.
Aquilo tudo coube direitinho no álbum de imagens do Mário.
“Os crepúsculos não cabem no mundo”
Essas e outras viagens do modernista Mário de Andrade estão retratadas no livro de estreia do jornalista e editor do Viagem em Pauta, Eduardo Vessoni, “Os crepúsculos não cabem no mundo: as viagens de Mário de Andrade” (editora Patuá).
Seu livro de estreia traz curiosidades sobre as experiências de Mário na estrada, reunidas após uma extensa pesquisa de três anos em livros, crônicas, cartas, fotografias e cartões-postais que, dispersos ao longo da obra do poeta, fazem o leitor conhecer um outro Mário de Andrade.
“Fiz esse livro para levar ao público em geral outra abordagem sobre o Mário, longe das teorias, da Academia e das notas de rodapé. Essa é uma obra para o leitor não especializado viajar nas viagens do escritor”, descreve Eduardo Vessoni.
O livro tem capa do ilustrador Alessandro Romio e prefácio de Ignácio de Loyola Brandão, escritor nascido em Araraquara (SP) para onde Mário viajava para se curar, descansar de suas próprias viagens e concluir, na chácara de Pio Lourenço, um de seus clássicos, “Macunaíma”.
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“Há anos, muitos anos, que eu não deparava com um estudo tão diverso e cativante como esse de Eduardo Vessoni. Principalmente porque é um texto delicioso de ler, sem ter uma linguagem cifrada, com os jargões acadêmicos, vocabulário inacessível, destinado a estreito círculo”, descreve Ignácio.
Entre as coincidências com Mário, o cronista araraquarense lembra as visitas àquela casa no interior de São Paulo.
“Podia eu ter ideia de que aquele pedaço de terra em minha rua faria parte da literatura brasileira? Com espanto, descobri um dia que ‘Macunaíma’ tinha sido escrito naquela chácara Sapucaia”, conta Ignácio no prefácio.
O livro traz também curiosidades da vida pessoal daquele paulistano tão apegado à sua casa na Barra Funda, bairro da zona oeste de São Paulo. “Não fui feito pra viajar, bolas”, costumava dizer Mário, mais resolvido a escrever do que a viajar.
Outras viagens de Mário de Andrade
‘O Turista Aprendiz’
(IPHAN)
Nesse livro póstumo de 1976, organizado pela pesquisadora Telê Ancona Lopez, Mário descreve em diário e textos informativos suas duas grandes viagens pelo Brasil: a Amazônia (1927) e o Nordeste (1928/29).
‘Há uma gota de poesia em cada rio da Amazônia’
(editora Abacatte)
Nesse livro ilustrado, Fernando Pires traz para o público infantojuvenil trechos dos diários de bordo que o poeta modernista escreveu durante sua viagem para a Amazônia.
‘Mário de Andrade fotógrafo e aprendiz’
(IEB-USP)
Obra fartamente ilustrada com fotografias feitas pelo próprio escritor, em suas viagens pelo Brasil, como a Amazônia e o Nordeste.
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