Escalando uma “montanha que mexe”: brasileiros relatam experiência no Ártico


Médica e mãe, Karina Oliani vai logo avisando. Escalar um iceberg no Ártico é uma experiência “extremamente perigosa, instável e imprevisível”.

Mas o que é uma “montanha que mexe” para quem já fez tirolesa num lago de lava vulcânica, na Etiópia, nadou com crocodilos no México e caçou redemoinhos de vento no Vale dos Tornados, nos EUA?

“O iceberg racha, desprende e pode flipar [virar, em português]. É um risco muito alto, mas escalar a [montanha] K2 também é. Não estou incentivando e não recomendo”, conta Karina para o Viagem em Pauta.

Por isso, cauteloso leitor, não tente fazer em casa (muito menos no Ártico) o que você vai ler a seguir. Lembre-se que essas experiências foram realizadas por profissionais treinados para atividades extremas, planejadas com antecedência e com equipamentos adequados.

Karina Oliani, na Groenlândia (foto: Pitaya Filmes)

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Passagem do Noroeste

Karina, a primeira brasileira especializada em emergência e resgate em áreas remotas, e o alemão naturalizado brasileiro Sylvestre Campe, líder da expedição, são alguns dos tripulantes do veleiro Abel Tasman, que está cruzando a Passagem do Noroeste, no encontro dos oceanos Atlântico e Pacífico, região acima do Círculo Polar Ártico.

A Ocean Science Expedition partiu de Bergen, na Noruega, no último dia 10 de junho, para chegar no Estreito de Bering, sabe-se lá quando. Na última atualização enviada para o Viagem em Pauta, no dia 21 de agosto, a expedição se encontrava num iceberg qualquer, a oeste da King William Island, ilha no Ártico canadense.

A escalada, porém, foi em Søndre Upernavik, uma cidade minúscula com 195 habitantes, no arquipélago Upernavik, na Groenlândia.

“Os icebergs do Ártico encantam pela sua beleza, pelo tamanho e pelas formas. Mas também são aterrorizantes”, contou o líder, na travessia da Groenlândia para o Canadá, cuja visibilidade de navegação não passava de 20 metros, durante entrevista para esta reportagem.

Ainda que estivessem com equipamento necessário para uma escalada em gelo, em um iceberg não se trata de encontrar um lugar seguro, mas um que seja o menos perigoso.

Veleiro Abel Tasman, na Groenlândia (foto: Sylvestre Campe)

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“Ele flipa e racha sem dar nenhum sinal antes. Foi um momento muito tenso”, lembra Karina, que precisou ser o mais ágil possível para não demorar na atividade em paredões congelados de até 30 metros de altura.

Feita a análise, a dupla encontraria outra dificuldade: como desembarcar já com os crampons nos pés? Esse conjunto de pontas afiadas que envolve o calçado do alpinista não só funciona como garras que facilitam caminhar sobre terreno gelado como também… fura botes.

“Decidimos escalar um iceberg, obviamente, com muito respeito, cautela e usando o sexto sentido, aquela vozinha interna que diz quando dar meia volta e abortar [a escalada]”, conta Campe por telefone.

Diferente de uma escalada normal, os escaladores não estavam amarrados por nenhuma corda, para que pudessem descer o mais rápido possível, no caso de um dos icebergs se mexer. Por isso, numa curiosa inversão de papéis, tudo aquilo foi acompanhado pela filha de Sylvestre.

Cleo Campe ficou perto do bote para resgatar a dupla, em caso de algum acidente como a virada de um iceberg ou queda na água, o que poderia ser fatal.

“Fiquei muito aliviada quando meu pai me chamou pelo rádio dizendo que tinham terminado a escalada e que eu podia buscá-los”, lembra Cleo.

Sylvestre com seu paramotor, na Groenlândia (foto: Arquivo Pessoal)
foto: Divulgação


“A gente quer chegar perto, mesmo sabendo que são monumentos que se mexem. Você sente um leve movimento, sente que o iceberg está vivo. E isso é fascinante.”

Sylvestre Campe


Esse alemão, que só se satisfaz quando garante uma imagem aérea, é conhecido pelas expedições com travessias a bordo de um paramotor, “brinquedinho” que ele também levou para a travessia.

E, em se tratando de Ártico, por onde se olha são icebergs “que quebram, reviram e criam ondas”. De todos os tamanhos, formas e densidades.

Naquela espécie de playground congelado, a tripulação esteve também no Ilulissat Icefjord, um fiorde Patrimônio Mundial da UNESCO que fica perto da cidade de Ilulissat, considerada a “capital mundial dos icebergs”, na costa ocidental da Groenlândia, na Baía de Disko.

“É único porque a geografia local faz com que esses icebergs fiquem presos nessa baía, formando uma concentração absurda de icebergs”, lembra Karina.

foto: Pitaya Filmes
Wakeboard na Groenlândia (foto: Pitaya Filmes)

Playground polar

Considerada uma espécie de parque de esculturas de gelo, a região também serviu de cenário para Karina praticar wakeboard, esporte com uma prancha puxada por uma lancha.

Apesar de navegar entre icebergs também ser uma experiência arriscada, Karina achou mágica a sensação de deslizar sobre aquelas águas, encostando a mão em geleiras, “uma coisa especial, mas muito perigosa” (e não é que mãe dela tinha razão quando dizia que a escaladora de berços era uma bebê perigosa?).

Bicampeã brasileira do esporte, aos 17 anos, Karina sentiu na pele, literalmente, a mudança de humor em territórios polares, começando a atividade com o céu nublado, “aquela coisa bem Groenlândia”, e finalizando-a com céu azul.

A paulistana praticou também Stand Up Paddle, caiaque, trilha e mergulho em gelo, uma modalidade complexa que exige certificação específica para administração de “roupa seca”, usada em ambientes mais frios.

Que o diga a filha do líder da expedição.

Karina fazendo SUP, na Groenlândia (foto: Pitaya Filmes)

Cleo Campe, 27 anos, passou meses se preparando para aquelas águas geladas e mandou até fazer uma roupa especial de mergulho com 9,5 mm de espessura.

“Inicialmente, o gelo era branco, mas ao descer, o branco foi se transformando em azul claro e, depois, em um azul escuro e dramático”, descreve Cleo, fascinada com aquele mundo submerso de pequenas cavernas e distintas texturas.

Um dos momentos mais tensos da experiência foi quando ela acabou “respirando água”, enquanto explorava uma mini caverna. “Isso gerou um certo pânico, já que ainda tinha uns dez metros de iceberg para subir até a superfície”, lembra em depoimento via mensagem de texto, enviada ao Viagem em Pauta.

Para Cleo, porém, essa travessia está sendo não só de dúvidas, mas também de certezas.

Cleo Campe (foto: Arquivo Pessoal)

Embora submergir em mares e rios não seja novidade para ela, há cerca de cinco anos, Cleo descobriu o mergulho em apneia, quando se usa apenas o ar dos pulmões.

“Não gosto da ideia de depender de equipamentos. Prefiro depender só de mim e assim ter mais controle. Tenho mais medo do equipamento scuba falhar”, confessa a mergulhadora que, no Ártico, chegou a praticar a atividade duas vezes debaixo de icebergs.

Em apneia, Cleo se sente mais ágil nos movimentos e com maior velocidade de navegação, já que não precisa se preocupar com detalhes como o ajuste de ar, por exemplo. “Me sinto muito mais livre pra explorar”, completa.

Cleo Campe em iceberg na Groenlândia (foto: Arquivo Pessoal)

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O Ártico não é brincadeira, não

Apesar de você jurar que isso tudo é uma viagem aventureira cheia de esportes radicais, Karina, nem ninguém da tripulação, está ali a passeio.

A missão dessa expedição científica ousada é aumentar a conscientização sobre os seis pontos de não retorno, como são conhecidas as situações ambientais irreversíveis como, por exemplo, o colapso da Amazônia e o degelo nos extremos do planeta.

A equipe conta também com os trabalhos do sonoplasta Sebastian Sánchez, que desembarcou no Ártico com diversos hidrofones para capturar e entender os sons subaquáticos que o gelo emite, a até 100 metros de profundidade, e medir a poluição sonora marinha em um ambiente tão isolado.

Sua esposa Cleo lembra a sensação de captar, debaixo d’água, aquilo que não se pode ouvir na superfície.

“O tempo todo, algo se rachava ou quebrava e, fora da água, não percebíamos nada. A sensação é um pouco sinistra, mas isso mostra que o iceberg está sempre em movimento”, completa.

Para Sylvestre, tudo o que está sendo coletado em imagens, “um relato visual completo do que é a Passagem, servirá de base de pesquisa para muitos cientistas”.

foto: Pitaya Filmes

A expedição está tocando cinco projetos científicos ao mesmo tempo, como a medição de parâmetros oceanográficos, em parceria com a Ocean Race; e análise da presença de microplásticos com uma máquina acionada duas vezes ao dia, cujos dados captados são enviados para que os parceiros da expedição possam analisar o material.

“Diariamente, são coletadas informações do oceano. Tem os dados de CO2, O2, salinidade e temperatura. E isso é importante porque estamos tabelando todos esses dados da viagem, de Bergen ao Alasca”, explica Keith Tuffley, tripulante e proprietário do veleiro.

A tripulação da Ocean Science Expedition é composta também pelo brasileiro Ramon Gonçalves, cinegrafista, fotógrafo e operador de drone; por Kester Haynes, piloto de paramotor; e pelos skippers Alex e Isak Rockstrom.

A viagem segue também com a análise de situações ambientais irreversíveis, como o degelo nos extremos do planeta, e pesquisas de DNA, através da coleta de amostras da água do mar para um acompanhamento não invasivo da vida selvagem local.

foto: Divulgação

“A Nature Metrics [uma das parceiras da expedição] utiliza amostras de DNA para monitorar e avaliar a biodiversidade em diversos ambientes. Coletando DNA ambiental (eDNA) da água, solo e ar, eles conseguem identificar a presença de diferentes espécies sem precisar vê-las ou capturá-las diretamente”, descreve Karina.

Se estivesse vivo, o explorador norueguês Roald Amundsen, líder da primeira travessia da Passagem do Noroeste e uma das maiores inspirações da tripulação, ficaria orgulhoso de ver aquilo tudo.

* Karina Oliani viajou para a Groenlândia com o apoio do Visit Greenland, Blue Trail Guest House, Hollywood House e Hotel Aurora Nuuk

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