Nos filmes do cearense Karim Aïnouz, a geografia do lado de fora é a protagonista que costura histórias e conduz personagens.
É assim como roteirista (‘Abril Despedaçado’, ‘Cidade Baixa’ e ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’) e também como diretor (‘Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo’, ‘Aeroporto Central’ e ‘Marinheiro das Montanhas’).
Mas, dessa vez, a viagem vai ser para dentro.
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Nesta quinta-feira, 22 de agosto, ‘Motel Destino’ estreia nos cinemas brasileiros com a história de Heraldo (Iago Xavier) que, depois de uma noite de sexo casual, se vê confinado e sem dinheiro num quarto de motel de beira de estrada.
Jurado de morte, o jovem vê em Daiana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção) a chance de se refugiar no empreendimento que dá nome ao longa. E o que o espectador vê dali para frente é como espiar o mais íntimo da vida alheia.
“Apesar de ser um espaço de confinamento, [o motel] me permitiu trazer para o meu cinema algo que eu nunca tinha feito antes, que é a expressão do inconsciente”, analisa Aïnouz, durante coletiva de imprensa em que o Viagem em Pauta esteve presente, na semana passada.
Para o diretor colocar dez galinhas sobre uma cama de motel, uma cobra na banheira e um bode nos corredores, foi só uma questão de tempo (e de intimidade com o claustrofóbico set).
Sexo, tem (e não é pouco, muito menos contido), mas os personagens estão preocupados com outras questões pessoais para resolver. “O motel é realmente o terreno da fantasia, um espaço de prazer, mas é também uma espécie de prisão”, diz o diretor sobre esse espaço quase que, exclusivamente, brasileiro.
Gravado no Ceará, terra natal desse diretor que não rodava no estado desde ‘O Céu de Suely’ (2006), esse “thriller erótico cearense” tem cenas ambientadas em Beberibe, destino turístico conhecido pelas falésias da praia de Morro Branco, a 90 quilômetros de Fortaleza, aproximadamente.
Era na vizinha Prainha, que também está entre as locações, que Aïnouz passava as férias na infância. Não se trata, porém, de um filme de nostalgia nem sentimentalismo, é cinema de reencontro.
“Eu estava com muita saudade de fazer um filme não só em português, mas também um filme cearense. Tinha uma coisa muito impressionante não só de memória, mas de fome de Brasil, de Ceará e de Fortaleza”, lembra o diretor, que não vinha ao Brasil “desde o Golpe e a eleição da extrema direita”.
Mais do que um filme nacional, ‘Motel Destino’ é, brasileiramente, cearense, feito por cearenses (Assunção é uma das exceções) e gravado em território cearense, distante daquele Nordeste forjado em estúdio para agradar o público do lado de cá do país.
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Cores de Karim Aïnouz
Em fuga, o protagonista Heraldo vai ficando no motel tempo suficiente para que venham à tona questões como resgate do passado, falta de oportunidades para jovens, vulnerabilidade, relação tóxica, disputa de poder e casamento abusivo, nesse último caso, materializado pelo miliciano vivido por Assunção.
Eis o Brasil moralista que espia si mesmo pela fechadura (ou, no caso do motel do longa, pela janelinha que separa os quartos dos clientes e o corredor dos bastidores do estabelecimento).
“Ao mesmo tempo que [o motel] dá a possibilidade de trabalhar o confinamento e o isolamento, ele é também um vórtex do inconsciente”, compara o diretor.
Daí a presença de tantos animais em cena.
“Fazia muito tempo que eu não filmava com bicho”, lembra Aïnouz, em relação às alucinações que os personagens vão tendo com cobra, bode e galinhas.
Enquanto o colorido Ceará turístico aparece do lado de fora, o trio de protagonistas se confina em ambientes interiores carregados de neon, um trabalho potente da diretora de fotografia Hélène Louvart, que funde as cores do figurino dos personagens aos tons fortes das paredes e adereços do motel.
Em ‘Motel Destino’, nada é velado, tudo é intenso, numa luta contra os próprios medos que emergem num emaranhado de sonhos e pesadelos, intensificados por uma trilha incidental que se confunde com o permanente gemido de prazer dos clientes e o portão que se fecha sempre num tom mais alto do que o normal.
“Por ser claustrofóbico, é sempre uma pressão psicológica muito grande e isso altera, obviamente, o comportamento de todos ali [no motel]”, analisa o ator Fábio Assunção, que também estava presente na coletiva, em São Paulo.
Numa espécie de pré-confinamento como preparação para a carga emocional que se seguiria com as filmagens, a equipe ensaiou durante um mês no único motel de Beberibe, que ficou fechado ao público, durante as filmagens.
“Acho que naquele período [das diárias] teve uma certa seca [na cidade]”, brincou o produtor Fabiano Gullane.
Entre os mais de 80 motéis que a produção visitou no Ceará, o de Beberibe tinha condições técnicas mais adequadas, como os quartos maiores e as áreas para maior recuo de câmera.
“A arena do motel era muito fértil de possibilidades cinematográficas, não só dramatúrgicas”, diz Aïnouz.
Uma figura importante nessa produção de cargas emocional e sexual intensas foi a de Roberta Serrado, coordenadora de intimidade que não só construiu a coreografia das cenas de sexo, mas também garantiu conforto ao elenco, nos momentos mais íntimos.
“O mais potente era se arriscar a cada dia de filmagem, a cena de sexo era só resultado de como a gente se relacionava no set. Foi muito confortável”, conta a atriz Nataly Rocha.
E a “apenas uma parede de distância”, como descreve Gullane, o confinamento deu lugar a um mar de águas esverdeadas recortadas por falésias, do outro lado da estrada. “É muito louco pensar que aquele monte de segredo está todo ali confinado”, completa o produtor.
E se Heraldo não consegue realizar aquilo que deseja, ao menos, luta para não morrer.
SAIBA MAIS
Motel Destino
Brasil, 2024, cor, suspense, 115 min., idioma: português
Direção: Karim Aïnouz
Produção: Cinema Inflamável e Gullane, coproduzido internacionalmente por Maneki Films (França) e pela The Match Factory (Alemanha), em associação com Brouhaha Entertainment e Written Rock Films (Reino Unido)
Elenco: Fabio Assunção, Iago Xavier, Nataly Rocha, Renan Capivara, Yuri Yamamoto, Fabíola Líper, Isabela Catão e Jupyra Carvalho
A première mundial do longa foi em maio deste ano, na França, onde a revista Vanity Fair classificou como o filme mais quente de Cannes, onde foi aplaudido por 12 minutos. Já sua primeira exibição no Brasil aconteceu em Fortaleza, capital do Ceará e cidade natal do diretor.
Estreia nos cinemas em 22 de agosto.
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