O que o Muro de Berlim separou, o turismo da Alemanha uniu


É tanta saudade do lado de lá do muro, que tem até uma expressão para isso. Em alemão, ostalgie (ost + nostalgie) pode ser traduzida como lestalgia, ou seja, “saudade do leste”.

Mais do que alimentar sentimentalismos, a Alemanha fez da sua história uma forma de olhar pelo retrovisor para não repetir os erros do passado, que aliás conta com outra palavra que explica esse olhar para dentro, Erinnerungskultur, algo como “cultura da memória”. Por isso, até hoje, o país mantém atrações turísticas que entretêm e educam, independente do teor da lembrança.

“É importante passar a mensagem de que as revoluções também podem ser feitas de modo pacífico, sem uso de violência”, descreve Carlo Carbone, gerente do Visit Berlin, órgão oficial de promoção do turismo na cidade.

Em novembro de 2024, são celebrados os 35 anos da queda do Muro de Berlim, a polêmica construção que dividiu aquele país, entre 1961 e 1989. Considerada um dos maiores símbolos arquitetônicos e ideológicos de controle sobre uma nação, a construção parece mais viva do que nunca e, dessa vez, em versões para turista ver.

foto: Eduardo Vessoni

Para fugir do óbvio, Carbone sugere o Berlin Wall Memorial, na histórica Bernauer Strasse, rua onde um dia esteve uma das fronteiras entre os setores Oriental e Ocidental da capital alemã.

Atualmente, o local abriga uma exposição ao ar livre que conta a história do Muro de Berlim, como a Janela da Memória, uma sequência de fotos que homenageia mortos e feridos que tentaram cruzar as fronteiras, e a bela Capela da Reconciliação, construção de taipa oval com um revestimento de ripas de madeira, e missas em nome dos mortos.

A via é lembrada também com imagens marcantes de residentes da Bernauer, cujos corpos eram puxados, simultaneamente, por policias orientais que tentavam trazê-los de volta e por ocidentais que insistiam em garantir-lhes a liberdade.

Outra dica do gerente do Visit Berlin é o Palácio das Lágrimas (Tränenpalast, em alemão), museu num antigo posto de controle alfandegário com exposição permanente com objetos originais e relatos de fugas.

Era ali que muitos alemães se despediam de seus parentes, na passagem de fronteira da Friedrichstrasse, local em que, hoje, os visitantes vivenciam os antigos procedimentos do posto de controle.

foto: Eduardo Vessoni

Carbone recomenda também o Stasi Museum, na antiga sede da Stasi, polícia secreta e de inteligência da RDA (República Democrática Alemã), a Alemanha Oriental, originalmente, conhecida como DDR (Deutsche Demokratische Republik).

Para entender melhor aquele complexo sistema de separações e perseguições, a exposição permanente Segurança do Estado na Ditadura do SED (Sozialistische Einheitspartei Deutschlands), reconta a história do local e explica a estrutura, desenvolvimento e funcionamento do Partido Socialista Unificado da Alemanha, na época, o único no poder.

As opções não param por aí, inclusive tem experiências curiosas como o passeio em um autêntico Trabant, o famoso automóvel compacto da era socialista, e uma visita pelos subterrâneos de Berlim, tal qual um fugitivo da época do Muro.

Antes de continuar, porém, senta que lá vem (mais) história.

Palácio das Lágrimas, em Berlim (foto: Eduardo Vessoni)

Muro de Berlim: por que?

Não era novidade que líderes da Alemanha pretendiam dominar a Europa. Nem que para isso fosse preciso plantar um muro bem na porta da casa daquela gente incapaz de imaginar o que viria pela frente.

No final da Segunda Guerra Mundial, a nação nazista de Adolf Hitler estava em ruínas e dividida em zonas de ocupação administradas pelos Aliados vencedores da Segunda Guerra. Do lado ocidental capitalista, EUA, França e Grã-Bretanha; do outro, soviéticos tomavam Berlim como espólio de guerra e começavam a transformá-la numa espécie de satélite do comunismo.

Para evitar a contaminação com o vizinho, a União Soviética dava início então a uma série de ações que isolavam a Alemanha Oriental do resto do mundo não comunista. O muro seria uma delas, separando a RDA e a RFA (República Federal da Alemanha ou Alemanha Ocidental), criadas em 1949.

foto: Eduardo Vessoni

Até então sem concreto ou vergalhões, a construção começava a ter seus primeiros arrimos erguidos por uma ditadura estabelecida pelo SED.

Enquanto uns se fortaleciam com a chegada de fazendeiros e homens qualificados que passaram a contribuir para a ascensão econômica da Alemanha Ocidental, o lado comunista enfraquecia com o desaparecimento de sua população.

Até que um dia, em 1961, o líder comunista Walter Ulbricht soltou a seguinte frase, durante uma coletiva de imprensa, em que uma jornalista o questionou sobre como seria a nova fronteira nacional:


“Ninguém tem a intenção de construir um muro”,

respondeu Ulbricht, sem que ninguém tivesse mencionado tal palavra, vítima de um golpe de traição do próprio inconsciente que anunciava o que viria pela frente.


Em um domingo de verão, dois meses depois, Berlim amanhecia cercada por rolos de arames farpados e dezenas de cruzamentos bloqueados. Nas semanas seguintes, começaram a ser erguidos obstáculos para bloquear veículos, torres de observação e um… muro provisório.

Construções eram derrubadas para dar lugar a novas faixas de isolamento e edifícios que ficavam ao lado das fronteiras eram lacradas com cimentos, enquanto os moradores dos apartamentos orientais vizinhos pulavam de suas janelas para a rua, já em território ocidental.

E, para quem não se conformava em ficar naquela ilha socialista isolada, a solução era fugir para o mundo capitalista do outro lado do Muro.

foto: Eduardo Vessoni

Liberdade = criatividade

Segundo a Stasi, mais de três mil pessoas foram presas, entre agosto e dezembro de 1961, ao tentarem cruzar aquela barreira ideológica.

E valia qualquer coisa para conseguir a liberdade, ilegalmente.

Uniformes militares feitos com material contrabandeado, malas interconectadas com interior prolongado que servia de refúgio e até um balão caseiro de ar quente foram algumas das estratégias para escapar.

Outras alternativas davam esperanças a quem queria deixar a cidade, como a falsificação de passaportes estrangeiros, serviço organizado por estudantes e com uma certa conivência não oficial de autoridades também ocidentais.

Uma das imagens mais marcantes é o salto para a liberdade, protagonizado pelo cabo Hans Conrad Schumann, responsável pelo controle numa das fronteiras entre os dois estados alemães, na Bernauer Strasse.

Em 15 de agosto de 1961, em um ponto onde apenas uma barreira feita com arame farpado separava a cidade, Schumann se viu tentado pelos chamados insistentes de policiais da Berlim Ocidental do outro lado da barreira de estrutura frágil.

foto: Domínio Público

O cabo largou então sua submetralhadora automática no chão, saltou sobre o arame farpado e entrou correndo no interior do carro policial que já estava com o motor em funcionamento à sua espera. O primeiro desertor do sistema comunista da Alemanha Oriental teve seu salto eternizado pelo jovem repórter Peter Leibing.

Atualmente, aparatos de fuga se encontram em exposição no Mauer Museum, museu berlinense com acervo dedicado ao Muro, como a fuga de 29 pessoas, entre 1971 e 1973, no interior de uma máquina de solda de 260 quilos, cujas extremidades eram protegidas por uma placa elétrica, de um lado, e cabos, do outro, impedindo que os refugiados fossem vistos em seu interior.

Novos esquemas começaram a surgir nos anos seguintes como as fugas pela rede subterrânea de esgoto em Berlim que, por vezes, foram descobertas por conta do rastro deixado pelo cheiro do bueiro impregnado nas roupas dos fugitivos.

A partir de 1962, túneis sob o solo arenoso da capital foram construídos e, dois anos mais tarde, mais de 70 deles eram usados para fugas em direção à Alemanha Ocidental.

Tour pelos subterrâneos de Berlim (foto: Eduardo Vessoni)

O mais famoso deles foi o Túnel 29, localizado sob o número 78 da rua Bernauer. Com orientações de dois italianos da Universidade Livre da Alemanha Ocidental, Mimmo e Gigi, a obra foi feita com a ajuda de 41 voluntários e facilitou a fuga de 29 pessoas, em duas noites de operação, em setembro de 1962.

A construção só seria descoberta pela Stasi, dias mais tarde, quando o rompimento da tubulação alagaria não só o túnel, mas também a esperança daquela gente que queria escapar para o Ocidente.

As escavações eram financiadas por meios de comunicação interessados em notícias e fotos exclusivas como a revista semanal alemã Stern e a rede americana NBC, que chegou a oferecer transmissores de rádio e adiantou 50 mil marcos alemães para a construção do Túnel 29, em troca da cobertura jornalística.

Outra passagem ilegal famosa foi o Túnel 57, conhecido também como Fuchs, uma passagem subterrânea com 145 metros de comprimento e 70 centímetros de altura por onde 57 pessoas conseguiram fugir para o oeste, entre os dias 3 e 5 de outubro de 1964.

foto: Eduardo Vessoni

Na noite daquele mesmo dia cinco, o túnel seria invadido por dois homens que se passaram por fugitivos e, ao deixarem o local para buscar um suposto amigo que os esperava do lado de fora, retornaram com policiais de fronteira (os Grepos), dando início a um tiroteio histórico que mataria o soldado Ergon Schulz.

Por conta desses últimos acontecimentos fatais, acompanhados de uma certa desconfiança geral sobre possíveis desvios do dinheiro doado pelos meios de comunicação, a era dos túneis se encerrava naquele início de outubro de 1964.

Segundo o historiador Frederick Taylor, o Túnel 57 teria sido “o último projeto de fuga sem fins lucrativos, no qual nada se cobrou dos fugitivos”. Daquele momento em diante, “cobrava-se em dinheiro vivo, que de bom grado era pago”.

foto: Eduardo Vessoni

Um passeio simpático para matar as saudades da Alemanha Oriental, em Berlim, são os roteiros a bordo de um Trabant (“satélite”, em português), como eram chamados esses carrinhos compactos da era socialista.

O Trabi, como o carro também ficou conhecido, era um modelo barato com carroceria de plástico que foi produzido até o início dos anos 90.

Mais ecológicos, os roteiros de bicicleta duram três horas e meia e percorrem de 12 a 15 quilômetros, passando por atrações turísticas e históricas relacionadas à Guerra Fria e ao Muro de Berlim.

Entre as paradas estão o MauerPark, parque público no bairro Prenzlauer Berg, que ainda guarda pedaços do muro, o turístico Checkpoint Charlie, uma das mais famosas fronteiras estrangeiras para o setor Ocidental, e o Berlin Wall Memorial, na Bernauer Strasse.


O Muro em números

A construção teve versões que chegaram a 3,6 metros de altura, mais largo e com o topo arredondado para evitar novas evasões.

Segundo números oficiais, os 28 anos de separação alemã causaram 138 mortos (100 tentando deixar a Alemanha Oriental; 30, acidentalmente; e 8 soldados orientais assassinados por desertores, fugitivos ou até companheiros de trabalho).

No último ano de sua existência, o Muro de Berlim se estendia por 155 quilômetros e era reforçado com 302 guaritas, 20 bunkers, 259 áreas para cães, mais de 105 quilômetros de trincheiras anti-veículo e quase 130 quilômetros de cerca elétrica.

Com 368 metros de altura, inaugurada pouco antes do 20º aniversário da fundação da República Democrática Alemã, em 3 de outubro de 1969, a Torre de Televisão de Berlim foi erguida na Alemanha Oriental para mostrar seu poder para o resto do mundo, funcionando como torre de telecomunicações da RDA.


foto: Eduardo Vessoni

Os meios justificam o fim

Com o descontentamento da população e problemas como escassez de produtos e falta de energia, aquele estado falido dava sinais de que o fim da separação estava próximo. A falsa aparência de um estado bem-sucedido já não podia ser mantida, nem entre os próprios orientais e muito menos para o mundo exterior.

A menos de 200 quilômetros de Berlim, Leipzig fazia uma revolução. Silenciosa, pacífica e fundamental para a queda do Muro.

Desde 1982, aquela cidade da Saxônia era palco de um movimento popular que ficou conhecido como Revolução Pacífica, uma série de manifestações sem violência que aconteciam, religiosamente, às segundas-feiras, na Nikolaikirche (Igreja de São Nicolau, em português), no centro histórico de Leipzig, e que encorajariam todo restante da Alemanha.

Um mês antes da queda, 70 mil pessoas saíram às ruas da cidade, com velas nas mãos e ecoando um sonoro ‘Nós somos o povo’, em protesto contra aquela ditadura, em 9 de outubro de 1989.

Igreja de São Nicolau (foto: Eduardo Vessoni)

Em 1985, Mikhail Gorbatchov, o último líder soviético, assumiria o cargo de secretário-geral do Partido Comunista e protagonizaria mudanças radicais não só na Alemanha como em toda a União Soviética, como a retirada de seu título de Estado socialista e a democratização dos países comunistas do Leste Europeu.

“[Naquele dia] soubemos que a Alemanha Oriental não era mais a mesma. Pressentíamos, mais do que realmente sabíamos, que algo extraordinário havia acontecido. Só mais tarde compreenderíamos de fato que [a Alemanha] estava isolada atrás da Cortina de Ferro, como que guardada sob uma redoma, antes de desaparecer de todo. Durante 50 anos, a Alemanha estivera congelada”, descreve Michael Meyer, em seu livro “1989 – O Ano que mudou o mundo”.

O Muro de Berlim cairia tão inesperadamente quanto seu surgimento, 28 anos antes.

Na tarde do fatídico 9 de novembro de 1989, Günter Schabowskim, membro do comitê máximo do Partido Comunista, se encontrava em uma coletiva de imprensa, quando começou a ler, pausadamente, um conteúdo desconhecido até mesmo por ele.

foto: Creative Commons

A leitura disparava medidas que revogavam a lei que proibia viagens para fora da Alemanha Oriental, assim como a ordem de agilizar os pedidos de permissões de saídas e a abertura das fronteiras entre a RDA e a RFA.

“Quando entra em vigor?”, questionou um jornalista.

“Pelo que entendi, imediatamente”, devolveu Schabowskim.

Às 20 horas daquela longa noite, os jornais já anunciavam a abertura das fronteiras.

O mundo comunista nunca mais seria o mesmo. Muito menos a Alemanha.

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