Quando o jovem Mário Fava voltou para casa, depois de viajar o continente americano por 10 anos, sua mãe Cezira Mazzucatti questionou o porquê da demora. – “Mamma, eu não sabia que era tão longe”, respondeu, entre abraços e choros, o jovem paulista de Bariri.
Fava, Francisco Lopes da Cruz e Leônidas Borges de Oliveira foram os três destemidos brasileiros que protagonizaram aquela que ficou conhecida como uma das maiores aventuras sobre rodas na Terra, a bordo de dois Fords T, entre o Rio de Janeiro e os Estados Unidos.
A expedição naqueles calhambeques com 17cv de potência, iniciada no dia 16 de abril de 1928 na porta do jornal O Globo, um dos patrocinadores da empreitada, só terminaria em maio de 1938 e seria considerada a primeira viagem de carro feita entre os dois países.
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A bordo de um Ford
A primeira estrada entre o Rio de Janeiro e São Paulo nem havia sido inaugurada ainda, mas já tinha brasileiro querendo dirigir um Ford T até os Estados Unidos.
Quando seu carro deixou o Rio de Janeiro com as bandeiras do Brasil e dos EUA no capô do motor, o líder Leônidas não imaginava que dali para frente seriam quase 28 mil quilômetros de viagem, ao longo de uma década. Do jeito que desse, a viagem até Nova York cruzou 15 países das Américas, numa época em que rodovias eram raridades e a Estrada Panamericana era ainda uma intenção.
“[A viagem] é pioneira porque é uma história não só regional, mas também mundial. É a história da logística, das estradas. Abrange muita coisa”, analisa Giovanni Franco, professor de História e guia do Museu Mário Fava, em entrevista para o Viagem em Pauta.
Aliás, é nesse espaço em Bariri, a mais de 300 quilômetros da capital paulista, que o público pode conhecer detalhes dessa história de sobrevivência e persistência daqueles “arrojados patrícios” cientes das “agruras e dos tropeços de toda a ordem”, como o jornal patrocinador chegou a descrever aquele “raid automobilístico”.
Esquecido por mais de 60 anos, o périplo é recontado nos painéis desse museu, cujo acervo se destaca pela exposição do Ford T 18 original da expedição. Esse famoso Ford de Bigode, como o modelo era conhecido na época, veio desmontado de Detroit, nos EUA, e voltou a ser montado no Rio, em 1919.
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Foi com ele que Leônidas, idealizador da expedição, saiu da então capital do Brasil com destino a São Paulo, onde se juntariam Francisco e o mecânico Mário Fava, que substituiu o profissional anterior, Henrique Pellicier, que desistira da empreitada depois dos perrengues da primeira perna da viagem.
“Eles praticamente foram abrindo caminho daqui até lá, não havia estradas naquela época”, conta José Augusto Barboza Cava para a reportagem. Cava é um dos fundadores do museu e filho de João Cava, amigo de juventude do aventureiro Fava.
“Os três são heróis, mas o Mário se sobressai porque sem ele não seria possível a viagem. Era ele quem fazia os consertos nos carros”, garante Cava, em referência aos dois carros da expedição, batizados de Brasil e São Paulo.
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Porém, antes de estacionar ilustre no interior paulista, o Ford T passou anos, incógnito, nos museus do Ipiranga e, posteriormente, no da CPTM, ambos na capital paulista.
“De 1938 a 2018, ele [o carro] ficou sem reconhecimento, ninguém sabia do que se tratava. Foi só aqui, com a inauguração do museu, que toda a sua história foi contada”, comemora Franco, que tem investido nas visitas voltadas para as escolas.
Além do Ford bem conservado, o visitante pode ver também fotos e mapas, o documento expedido pela Ford que comprova o motor original do automóvel exposto, além de uma estátua em tamanho natural de Mário Fava e objetos não originais usados na viagem, como bússola, sextante e teodolito, e ferramentas que pertenceu ao pai de Cava.
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Viaja um pouquinho, para um pouquinho
Se ainda hoje cruzar as Américas por terra é tarefa só para os fortes, nem dá para imaginar o que significou aquilo tudo, nas primeiras décadas do século passado.
Mas o que a gente não imagina, o Museu Mário Fava conta.
Cava lembra que os viajantes chegaram a cruzar três vezes os Andes, entre o Peru e Bolívia. Só no trecho peruano da cordilheira, o trio percorreu 450 quilômetros de gelo e levou quatro meses para atravessar aquelas altas montanhas.
Certa vez, ao ficar sem combustível, o mecânico da expedição teve a ideia de misturar querosene com chicha, cerveja ancestral de milho de origem andina. Para não ressecar o motor, Fava usava banhas de porco e de lhama.
“Era, praticamente, uma charrete com motor”, diverte-se Cava.
O trecho da viagem que Franco mais gosta também aconteceu em território andino. Como a água do radiador sempre congelava, os viajantes precisavam esvaziá-lo todas as noites para então voltar a enchê-lo no dia seguinte.
“Pelo fato de ser um carro simples, [mecanicamente] a viagem também era fácil”, comenta o guia, em referência à travessia da mata densa da selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, até hoje considerada a mais perigosa do continente. Para cruzá-la foi preciso desmontar os carros e atravessá-los em um balsa de madeira.
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Assim como lembra a própria Ford, a viagem também foi conquistas (e História).
Os viajantes foram recebidos por presidentes da época, como Isidro Cueva (Equador) e Ricardo Oreamuno (Costa Rica), que chegaram a oferecer ajuda financeira. Em Washington, nos Estados Unidos, foram recebidos na Casa Branca pelo então presidente Franklin Delano Roosevelt, como “representantes de indústrias, câmaras de comércio e universidades”.
Na Nicarágua, tiraram fotos com o revolucionário Augusto Sandino, dias antes desse ser fuzilado numa emboscada, e se encontraram com Henry Ford, em Detroit (EUA).
De Nova York ao Rio de Janeiro, a viagem de volta foi feita de navio e o trio chegou ao porto da capital do Brasil no dia 25 de maio de 1938, com os dois Fords T a bordo. Dias depois, os viajantes seriam recebidos pelo então presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Catete.
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Ford de Bigode
Embora a primeira tentativa de Ford de construir um automóvel a gasolina tenha sido um quadriciclo, em 1896, o modelo mais famoso desse respeitado empresário da indústria automobilística dos Estados Unidos foi o Modelo T.
“Ford de Bigode”, como esse clássico ficou conhecido no Brasil, é um dos carros mais emblemáticos da Ford Motor Company. Inaugurada em 1903, a empresa ficava em Dearborn, cidade natal de Ford, vizinha a Detroit e antiga capital mundial do automóvel.
O Modelo T começou a ser produzido em 1908 e, na época, podia alcançar até 70 quilômetros por hora. É justamente após o início da fabricação deste veículo que Ford desenvolveu o conceito de linha de produção para diminuir o tempo e os custos de produção de automóveis.
Ford só não conseguiu criar atalhos para jovens aventureiros chegarem mais rápido na casa da mãe.
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Veja curiosidades da viagem
- Na edição da segunda-feira, 16 de abril de 1928, O Globo publicou uma nota sobre a partida dos “excursionistas” que cruzariam a “imensa distância com facilidade”.
- Os três ficaram perdidos na selva colombiana durante quatro meses e, debilitados, só conseguiram sair dali com a ajuda de indígenas.
- O cruzamento dos 187 quilômetros do trecho de Honduras levou apenas oito dias e não incluiu Tegucigalpa, capital hondurenha.
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- Apesar de serem recebidos com honra, no México, com direito a bailes e homenagens, os viajantes tiveram perrengues em San Jerônimo, quando Leônidas quase morreu de infecção, e na Cordilheira de Oaxaca, onde o trajeto teve que ser aberto à força.
- Após a visita a Getúlio Vargas, ruas da capital receberam o nome da cidade natal de cada um dos expedicionários: Rua Bariri, em Olaria; Travessa Descalvado, em Madureira; e Rua Florianópolis, em Praça Seca.
SAIBA MAIS
Museu Mário Fava
Rua Tiradentes, 410 – Bariri/SP
Tel.: (14) 3662-8855
De seg. a sexta das 9:00 às 17:00; e sáb. das 9:00 às 13:00
Ingresso: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia)
museumariofava.com.br
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