A viagem pela Passagem do Noroeste poderia ser uma história sobre tempestades invocadas, águas furiosas e ventos contra. E é.
Mas, no imprevisível Atlântico Norte, isso tudo foi apenas cenário para uma história ainda mais desafiadora.
Com estreia marcada para o próximo dia 13 de novembro, às 21:30, no Canal OFF, “O Labirinto do Ártico” aborda a relação entre Sylvestre e Cléo Campe, pai e filha que encararam o timão (e a própria história), durante a travessia daquela rota marítima que liga o Atlântico e o Pacífico.
Em junho do ano passado, acompanhada de outros sete tripulantes, a dupla saiu de Bergen, na Noruega, em direção à minúscula Nome, no Estreito de Bering.

Por mais de cem dias, seu mundo seguro foi o veleiro polar Abel Tasman, uma embarcação de quase 23 metros de comprimento, estrutura de aço e chapas de 10 mm de espessura, considerada uma das poucas do gênero com fôlego para cruzar a região.
“Numa expedição tão ambiciosa e desafiadora como essa, foi o melhor jeito de passar um tempo de qualidade com a Cléo. No fundo, foi uma desculpa para eu ficar com a minha filha”, conta o líder da expedição, Sylvestre, que passou a infância usando o sextante para traçar rotas náuticas em viagens do pai.
Assim como também contou para o Viagem em Pauta, embora a equipe tenha sugerido trocas de parceiros de turno, esse alemão naturalizado que reside no Brasil não abriu mão de estar com a filha brasileira, que mora na Alemanha.
“Essa série é sobre o olhar de uma pai sobre a filha.”
Sylvestre Campe
Em seis episódios, “O Labirinto do Ártico” não tem pressa, assim como deve ser uma viagem pelo extremo norte do planeta que, na série, vai se revelando como a própria relação entre pai e filha.
“A espera é algo muito perigoso porque você tem tempo demais para pensar e isso gera uma impaciência. O excesso de tempo, assim como o de informações que temos hoje em dia, é perigoso também porque perde-se a capacidade de dar valor à intuição”, conta Sylvestre.
Em uma navegação na porção ártica do Canadá e Alasca, tudo soa como derradeiro: a última reunião, o último abastecimento, a última chance de se preparar para aquilo que nem sempre se está preparado.
Dali para frente, não há plano B nem pontos de abrigo, como analisa um dos embarcados. Por isso, nesse tipo de travessia, planejamento é fundamental.
“São muitas coisas que você precisa preparar para uma viagem num lugar tão remoto como esse. A comida a bordo é tão importante quanto o diesel do veleiro”, compara Cléo, responsável pelo abastecimento de comida e pela produção da série, entre elas, burocracias como trâmites de visto e alfândegas.
Assim como ela contou para a reportagem, só para o café da manhã foram 70 kg de aveia e outros 70 kg de farinha para os pães que ela aprendeu fazer, antes da viagem.

As Ilhas Faroe e a islandesa Reykjavik foram alguns dos lugares brutos por onde a expedição passou. Aliás, a capital da Islândia foi a última chance de abastecimento, antes de seguirem viagem.
Um dos desafios foi Cape Farvel, uma das travessias mais assustadoras de se planejar.
“É um cabo lendário e aterrorizante, assim como o Cabo de Horn, no sul da América do Sul. É um nome que assusta os navegadores, um encontro climático pouco previsível”, descreve o líder da expedição.

Pai que aprende, filha que cuida
Entre todas as expedições feitas entre pai e filha, como a da Antártica, em 2016, essa foi a mais longa e a mais intensa, sobretudo por conta da corrida contra o tempo para evitar o congelamento das águas do Atlântico Norte.
Em dois turnos diferentes, pela manhã e à noite, a dupla dividia o timão e os compromissos com a captação de imagens para a série.
“Obviamente, tivemos vários momentos que a gente brigou bastante, somos dois arianos cabeçudos, mas eu acho que foi bem harmônico”, conta Cléo.
Mas o mesmo espaço que confina também cura.
Dessa vez, a experiente produtora teve que dar lugar à protagonista estreante, o que chegou a gerar conflitos, entre ela e o pai diretor da série, acostumado a protagonizar suas séries de TV. “A gente ficava brigado, no máximo, por uma hora ou duas, mas depois se resolvia”, conta Cléo.
“Gravando no Ártico, ficou bem claro que é muito mais interessante observar a Cléo do que tentar contar a minha própria história. Essa série é um olhar de um pai encantado com a filha dedicada à uma expedição, vivenciando a experiência de uma maneira tão intensa. Ela tinha fome e sede de aprender, e de forma muito elegante”, define.

Na série, o espectador também vai conhecer a versão cuidadora de Cléo, sobretudo quando um dos embarcados é um pai apegado “às coisas extremas”.
“Por causa disso, desde pequena, sou muito responsável. Então eu apreendi a tomar conta dele”, diverte-se a filha.
Em um dos episódios, enquanto parte da equipe escala um iceberg, é possível ouvir a voz doce que não consegue esconder o temor, quando o gelo começa a estalar.
“Ele fazia algumas coisas meio malucas e eu era a pessoa que falava ‘tá bom, mas chega né?”, lembra a filha mais velha dos três irmãos.
“Apesar das nossas conversas de temas variados, o silêncio também falava muita coisa. A monotonia fazia a gente observar o outro e gerava um entendimento pela outra pessoa. A viagem fortaleceu a nossa relação”, conclui.

Jovens e cientistas na Passagem do Noroeste
Além da liderança de Sylvestre, a Ocean Science Expedition contou com o trabalho pesado dos irmãos suecos Alex e Isak Rockström, capitão e imediato, de 27 e 25 anos, respectivamente. Daí o título de tripulação mais jovem a cruzar a Passagem do Noroeste.
Filhos do climatólogo Johan Rockström, um dos embarcados no veleiro, os dois cresceram velejando com Ciência.
“O Ártico está aquecendo três vezes mais rápido que a média do planeta. É a temperatura mais alta na Terra dos últimos cem mil anos”, avisa o pai Rockström.
A missão científica da expedição foi aumentar a conscientização sobre os seis pontos de não retorno, como são conhecidas as situações ambientais irreversíveis como o colapso da Amazônia e o degelo nos extremos do planeta.
“Na Passagem, fiquei surpreso como em alguns pontos não era tão frio como eu imaginava. Teve um momento surreal, quando a gente sentiu cheiro de cinzas no ar, por conta dos incêndios nas florestas no Canadá. As cinzas e o calor estavam chegando no Ártico, inclusive debaixo do gelo. Tem algo muito estranho acontecendo”, alerta Sylvestre.

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Entre 1903 e 1906, o norueguês Roald Amundsen foi o primeiro a navegar com sucesso a imprevisível Passagem do Noroeste, quando os polos Norte e Sul sequer tinham sido localizados.
Desde então, de acordo com dados do site thenorthwestpassage.info, apenas 430 embarcações navegaram a região, o que significa dizer que, por ali, passaram em média 3,5 embarcações por ano.
“O gelo transita com muita velocidade e, por conta das tempestades, vai se compactando e fechando trechos da Passagem”, conta Sylvestre sobre uma das maiores dificuldades dessa travessia polar.

A equipe contou com os trabalhos do sonoplasta Sebastian Sánchez, que desembarcou no Ártico com hidrofones para capturar e entender os sons subaquáticos que o gelo emite, a até 100 metros de profundidade, e medir a poluição sonora marinha em um ambiente tão isolado.
Outra brasileira a embarcar no Abel foi a paulistana Karina Oliani, médica e montanhista, que não só levou seus conhecimentos em emergência e resgate em áreas remotas como também a filha Kora que, aos três anos de idade, já esteve em mais de 20 países.
“O Sylvestre sabe o quanto é importante, para os pais, dividir com os filhos uma experiência tão intensa e bonita como essa. É algo que marca para sempre”, analisa Karina, que esteve ao lado da filha, durante uma semana, até que o mar “apertou e ficou casca grossa”.
Pela primeira vez na Groenlândia, Karina não só estreitou a relação com a filha como também realizou um sonho antigo, cruzar a Passagem do Noroeste.
“Eu adoro os extremos da Terra. Poder velejar com a minha fila num veleiro polar foi uma das experiências mais emocionantes e fantásticas”, conta para o Viagem em Pauta.

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A expedição teve também a participação de Ramon Gonçalves, soteropolitano que atuou como cinegrafista, fotógrafo e operador de drone.
“Considero uma das maiores expedições da minha vida. Vão ser muitos dias sem ver pessoas e com a possibilidade de ficar mais tempo do que o previsto para poder contornar trechos congelados”, disse Ramon, na época, em depoimento para a reportagem.
A viagem de descobertas também juntou Sylvestre e a filha Cléo, que raramente encontra o pai.
“Um instante único”, conta a brasileira em um dos episódios.
E a gente fica sem saber se a frase se refere à travessia, aos cenários vistos ou ao reencontro com o próprio pai.
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