Preconceituoso e, muitas vezes, normalizado, o capacitismo mede a capacidade de outra pessoa, em função de algum tipo de deficiência.
Sem falar nas barreiras físicas, arquitetônicas e atitudinais que impedem o pleno exercício da cidadania, bem como formas de tratamento, de comunicação e de práticas que também reforçam esse ato descriminatório.
Assim como conta a jornalista Jéssica Paula, a acessibilidade arquitetônica é o item mais lembrado, “o que já é um grande passo”. Mas só isso não é suficiente se o destino ou o atrativo não contar com profissionais capacitados para atender às necessidades desse público minorizado, e não minoria, como se convencionou, equivocadamente, dizer.
“É uma grande parte da população. Só no Brasil somos 18 milhões de pessoas”, lembra Jéssica.
De acordo com a lei 13146, 2015, o capacitismo é crime com multa e pena de reclusão de 1 a 3 anos.
O ato é definido como “toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”.
Para Jéssica, o capacitismo é uma das coisas que “minam muito as expectativas das pessoas com deficiência a saírem de casa”. Por isso, para se ter um turismo acessível, um destino precisa contar com capacitação de profissionais do setor e oferecer acesso à informação, como detalhes estruturais do atrativo (“é acessível para quem?”, provoca a jornalista).
A seguir, você conhece três histórias inspiradoras de brasileiros que ganharam as estradas e provaram (para si, sobretudo) que viajar é para todos.
Jéssica Paula
jornalista
Essa goiana de Rio Verde já esteve em algumas das nações mais conflituosas da África, cruzou os Lençóis Maranhenses e, há cerca de um ano, escalou uma das faces do Pão do Açúcar, no Rio de Janeiro.
Jéssica, naturalmente, seria mais uma das meninas atrevidas que já passaram pelo Viagem em Pauta, não fosse por um detalhe: as muletas que passou a usar depois que ficou paraplégica por conta de uma infecção na garganta migrar para a medula, aos seis anos.
Adaptar-se ao mundo não foi tarefa fácil, mas conquistá-lo tem sido sua meta, sobretudo, com autonomia.
“Se eu tenho informações [sobre a acessibilidade e os recursos disponíveis], eu passo a ter o poder de decidir se aquele lugar faz sentido para mim ou não, se eu quero ou não estar ali sob tais condições”, avisa Jéssica.
Sua primeira viagem foi aos 19 anos, sozinha e para fora do país, quando esteve em Buenos Aires, capital da Argentina. De lá para cá já desembarcou em 37 países e, pelas suas contas, rodou mais de 200 mil quilômetros.
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Em 2013, esteve dois meses em regiões africanas afetadas por conflitos políticos ou guerras, como Etiópia, Sudão e Uganda, cuja experiência lhe rendeu o livro “Estamos Aqui” (editora Schoba).
Há três anos, Jéssica atravessou 30 quilômetros dos Lençóis Maranhenses, em três dias, com o auxílio de um cavalo e um guia local. A goiana ficaria conhecida como a primeira pessoa de muletas a atravessar o atrativo mais famoso daquele estado.
“Quando eu vou para os Lençóis Maranhenses, eu não espero encontrar acessibilidade arquitetônica, no meio da natureza. Mas espero, sim, encontrar um guia preparado para me receber. E essa é a grande dificuldade”, lamenta a jornalista.
Já em julho de 2023, ela se tornaria a primeira mulher paraplégica a escalar o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, uma escalada de oito horas, em uma rocha de granito de quase 400 metros e subidas por cordas, trilhas e paredões verticais.
“Este ano [2024] fiquei quietinha, criando uma plataforma para que as pessoas possam acessar e ver quais lugares [no mundo] são acessíveis”, conta para a reportagem.
E, por último, mas não menos importante, a jornalista deixa bem claro:
“Essas melhorias não são caridade nem um favor”
Luiz Thadeu Nunes e Silva
engenheiro agrônomo
Após um acidente de carro, no interior do Rio Grande do Norte, em 2003, esse engenheiro agrônomo ficou internado durante quatro meses, passou por mais de 40 cirurgias e ficou sem pôr os pés no chão por quatro anos.
Desde 2009, porém, Luiz vem provando que viajar não é impossível. Pelo contrário, o currículo viageiro desse maranhense de São Luís já tem mais de 150 países visitados, daqueles que muito capacitista, inclusive, não teria coragem de conhecer, como Uganda, Quênia, Bielorrússia e Ucrânia (antes da guerra, obviamente).
Sem falar nas viagens pelo lado menos explorado do turismo nas Américas, como Guianas, Belize e Honduras, um MBA em Gestão Pública, um livro lançado em 2022 (‘Das Muletas Fiz Asas’ – nVersos Editora) e um curso EAD de Jornalismo em que ele cursa, atualmente, o 7º semestre.
Desde março de 2023, Luiz é subsecretário de turismo do estado do Maranhão e, desde então, tem trabalhado em conjunto com a Secretaria de Infraestrutura para mapeamento e execução das adaptações necessárias, em São Luiz.
“Alguns países da América do Sul, com um PIB menor que o de alguns estados do Nordeste, estão melhores adaptados do que o Brasil”, compara.
Juliana Tozzi
engenheira
Talvez você não conheça essa montanhista pelo nome. Mas, certamente, já ouviu falar da cadeira Julietti criada para ela (e para todos os outros cadeirantes que queiram ir mais longe ainda).
Foi após um câncer de mama e uma síndrome neurológica rara que essa engenheira passou a ter dificuldades na fala, perder coordenação motora e ficar impossibilitada de andar.
Para que ela pudesse continuar subindo montanhas, uma das suas paixões, o esposo Guilherme Simões Cordeiro criou em 2016, com a ajuda de um fabricante de bicicletas, uma cadeira adaptada para Juliana voltar a encarar trilhas de difícil acesso.
Em 2015, como lembra Guilherme, um modelo desse custava cerca de R$ 30 mil. Hoje, sua empresa Julietti Tecnologia Assistiva vende uma cadeira adaptada por, a partir, de R$ 7 mil.
Entre as facilidades do produto, Guilherme destaca a altura (que dá ao cadeirante um campo de visão real, como se ele estivesse de pé), e o uso de apenas uma roda, que garante a passagem da cadeira.
Desde então, já estiveram (Guilherme, Juliana e Julietti) no Maciço das Prateleiras, no Parque Nacional do Itatiaia (RJ), e na cordilheira dos Andes, onde subiram o vulcão Acotango, entre a Bolívia e o Chile, em busca do título de primeira cadeirante no mundo a subir uma montanha com mais de seis mil metros.
Atualmente, entre tantos projetos, o casal toca o Instituto Montanha para Todos, que incentiva o acesso à natureza para pessoas com algum tipo de deficiência motora, com o “desenvolvimento de equipamentos adaptados com design e inovação tecnológica”. Saiba mais: montanhaparatodos.com.br
Muito legal essa matéria !!! Parabéns pelo trabalho !!!
Obrigado pela mensagem, Andréa. Seja sempre bem vinda por aqui.