Eduardo Kobra, 48, é tímido, de poucos palavras e não se sente confortável em ser retratado por outras pessoas nem fazer um autorretrato.
“Eu já estou falando da minha personalidade quando coloco essas questões que ‘falo’ nos meus murais. Isso já é meu autorretrato”, descreve.
Ainda assim, no recém lançado “Kobra – Auto Retrato”, o espectador vê o artista em todas as suas gradações de cores possíveis. Dos tons mais melancólicos aos mais quentes, da depressão à fama mundial.
LEIA TAMBÉM: “Grafiteiro dá outros tons à pedreira na Paraíba”
Lançado em novembro de 2022, no Brasil e nos Estados Unidos, esse documentário da diretora e roteirista Lina Chamie retrata a carreira e a vida pessoal do grafiteiro paulistano.
Como se acompanhasse uma das tantas noites de insônia do grafiteiro, o espectador percorre a biografia do ponto de vista do próprio Kobra, que vai pedalando por pontos de São Paulo onde estão algumas de suas obras.
Em pouco mais de uma hora, esse documentário vai do grafite ilegal nas ruas de São Paulo, no início da carreira. até os murais de grandes proporções em mais de 30 países.
“As ruas são o meu ateliê, a cidade é uma possibilidade infinita de explorar”, define Kobra, em um dos depoimentos para o filme, disponível para aluguel no Prime Video.
VEJA TAMBÉM: “Clássicos que inspiraram a carreira de Tim Burton”
Arte teimosa
Para seus pais, aquele garoto nascido no Campo Limpo era uma decepção e, aos 17 anos, foi convidado a deixar a própria casa para morar sozinho. Já para os amigos do colégio, Carlos Eduardo Fernandes Léo era cobra na pintura.
Mas nem tudo foram só cores na vida desse artista, nascido e criado no Campo Limpo, distrito na Zona Sul de São Paulo.
Kobra conviveu em meio ao racismo, viu amigos serem mortos a tiros pela violência e, aos 17 anos, foi convidado pelos pais a sair forçadamente de casa, o que lhe causaria depressão, chegando a pesar 60 quilos.
“Eu queria ser compreendido por aquilo que eu estava fazendo”, declara sobre aqueles anos iniciais.
Apesar de deixar de fora alguns episódios pessoais, como a perda de uma filha, em 2020, Kobra aborda temas caros, não só para ele, mas também para a sociedade pós-pandemia de coronavírus.
“A insônia nunca saiu de mim”, revela o artista, que já chegou a passar duas noites seguidas em claro, uma das consequências pelos anos de intoxicação por metais pesados das tintas e solventes.
“[O problema de saúde] já foi uma condição medica para eu não pintar mais. Continuo por teimosia”, diz Kobra.
Como ele mesmo conta, recentemente, teve um quadro de depressão e teve que tomar 12 comprimidos de tarja preta, diariamente.
Mas Kobra, na vida e no filme, não faz drama. Faz arte.
Me dê a sua mão
Atualmente, são 42 obras assinadas ao redor do mundo, metade delas em Nova York.
Só em São Paulo, são cerca de 110 murais, sem falar nas dezenas de trabalhos em outras cidades brasileiras, como Santos, Brasília, Recife, Belém e Porto Alegre.
Depois de recusar ou cancelar 40 convites nacionais e internacionais, por conta da pandemia de coronavírus, Kobra está em um dos momentos de maior produção artística, como os últimos murais que fez relacionados a temas como saúde e sustentabilidade.
No ano passado, por exemplo, fez “Ciência e Fé”, mural de 20 metros de altura por dez de largura, em uma empena do Instituto de Radiologia, no Hospital das Clínicas; e, em 2020, em pleno pico da pandemia, o impactante “Coexistência – Memorial da Fé por todas as vítimas do Covid-19”, em frente à Igreja do Calvário, em Pinheiros (SP).
Com seu confundível estilo quadriculado de retratar temas sociais ou homenagear figuras públicas que admira, sua arte não busca apenas a estética, mas o significado contido em suas obras.
“Não é a cor pela cor, a imagem pela imagem. Busco também uma conexão entre isso”, conta no documentário.
VEJA VÍDEO
Kobra começou a pagar as próprias contas com seu trabalho, em 1993, quando foi convidado para pintar no extinto Playcenter, onde chegou a dormir por lá mesmo, por “três ou quatro dias diretos”.
“Levei um colchão porque eu queria fazer o melhor possível. Era a primeira vez que alguém me pagava por aquilo que eu gostava”, conta no documentário.
O artista lembra que aquele clássico dos parques de diversão na capital paulista foi fundamental em sua vida, tanto artística como pessoalmente, como o dia em que conheceu a esposa Andressa no Playcenter, com quem tem o filho Pedro.
“É uma alegria ter ele hoje na minha vida, para mim foi uma evolução enorme. Sou mais dependente dele, do que ele de mim, ele me ajudou demais num vazio da minha vida”, analisa.
Com o que foi recebendo com os trabalhos comerciais seguintes, o artista, que na época morava de aluguel, comprou um Mustang branco com banco de couro, em 1997.
“Eu fiz uma loucura, ninguém entendeu por que eu tinha feito aquilo”, lembra o artista.
LEIA TAMBÉM: “Conheça a capital mundial das histórias em quadrinhos”
Documentário sobre o Kobra
Se um dia Eduardo Kobra já teve medo por não ter sido acolhido, um dos seus temores atuais é ver sua arte apagada.
Quando era mais jovem, o artista até lidava melhor quando uma obra sua era apagada, fosse pela ação do tempo ou por decisões equivocadas de administradores públicos.Para ele, era só chegar lá e pintar tudo de novo.
Mas hoje ele não vê assim.
“Tem que haver uma mudança nesse pensamento de simplesmente descartar, já não é mais o momento de pensar dessa forma. Tudo é arte”, avalia.
E, no documentário sobre o Kobra, a edição de Lina Chamie e a fotografia de Lauro Escorel sabem muito bem disso.
A montagem se destaca em pontos como o fade out que vai apagando a imagem de Kobra, enquanto ele aborda a polêmica sobre o fim de suas obras ou então a cena em que o artista embarca em um ônibus em São Paulo e, ao cruzar a cortina que separa o veículo do motorista, Kobra adentra um estúdio com seus trabalhos expostos na parede.
Outro ponto alto do filme é a trilha sonora, que vai do hip-hop nas cenas urbanas a clássicos com tons mais dramáticos nos depoimentos sobre a infância e a depressão, sonora. Seus depoimentos são, constantemente, intercalados com sons de tiros e de andaime, barulho de trânsito, buzina de bike e chacoalhar de lata de tinta.
É arte na tela, tão mutante e frenética como as cidades que abrigam a colorida arte urbana de Kobra.
OBRAS DE KOBRA EM SÃO PAULO
E, se no início de tudo, o artista não tinha a menor percepção do seu trabalho como arte, fosse real ou sonhada, hoje ele sabe o que quer.
“Não pintar significa morrer. Não sei fazer outra coisa”, descreve.
Recentemente, o artista lançou o projeto “A Arte de Renovar”, que pretende restaurar alguns de seus murais em São Paulo.
Dividido em três partes (“em bom estado”, “obras que precisam ser restauradas” e “obras apagadas”), o site abriga cerca de 110 de seus murais.
VEJA TAMBÉM: “Arte de rua em Berlim, uma das capitais mundiais do grafite”
Seja o primeiro a comentar