No dia 19 de agosto de 1839, o mundo conhecia uma das invenções mais fascinantes: a fotografia, palavra de origem grega que, em tradução livre, significa “desenhar na luz”.
E, desde então, nunca mais se deixou de desenhar com ela.
Foi naquele dia que o daguerreótipo, considerado o primeiro processo fotográfico a ser comercializado, que a Academia Francesa de Ciências mostrava ao mundo a invenção de Joseph Nicèphore Niépce e Louis Jacques Mandé Daguerre, quem emprestou seu sobrenome à engenhoca.
Para comemorar o Dia Mundial da Fotografia, o Viagem em Pauta relembra os impactantes registros do fotógrafo Frank Hurley, um dos 28 homens que ficaram à deriva na Antártica, entre 1914 e 1916.
Dia da Fotografia: Frank Hurley na Antártica
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O cenário do lado de fora era desanimador.
Placas congeladas abraçavam o barco Endurance e sua estrutura de madeira rangia com a pressão do gelo. O crepúsculo eterno dera lugar a dias que viraram noite e as temperaturas externas variavam entre 20 e 30 graus negativos.
Em plena Primeira Guerra Mundial, não se esperavam heróis que não fossem os que estivessem no combate. Mas no extremo sul do planeta, a apenas 160 km da Antártica, 28 homens lutavam pela vida.
Esses seriam apenas relatos escritos, não fossem os registros feitos pelo fotógrafo Frank Hurley, um dos 28 homens que ficaram à deriva no extremo sul do planeta, entre 1914 e 1916, desde que placas de gelo impediram a continuidade da “Expedição Transantártica Imperial”.
Como foi
Considerada a última grande viagem da Era dos Descobrimentos, a empreitada liderada pelo irlandês Ernest Shackleton pretendia cruzar a Antártica a pé, de ponta a ponta.
Shackleton ainda não se conformava de não ter sido o primeiro explorador a chegar ao Polo Sul, título que o norueguês Roald Amundsen conquistara, em 1911. Para isso, organizou essa viagem entre a Inglaterra e o Continente Branco, em 1914, a bordo do vapor de madeira Endurance.
Presos no gelo por oito meses, no Mar de Weddell, aqueles 28 homens abandonariam o barco em outubro de 1915. O último resgate só aconteceria em agosto do ano seguinte, 10 meses depois.
O fotógrafo Frank Hurley
A relação entre o chefe da expedição e Frank Hurley não era das melhores. Arrogante e mandão, o australiano era visto por Shackleton com desconfiança, embora o incluísse “em todas as discussões importantes”.
Mas Hurley era peça fundamental entre os tripulantes.
Assim como lembra Caroline Alexander no livro “Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida” (ed. Companhia das Letras), as habilidades técnicas do fotógrafo ajudaram na criação de instalações elétricas, bombas e fogões improvisados.
A obra de Caroline é um dos mais belos registros dedicados a essa viagem histórica, sobretudo pela variedade de fotos históricas feitas por Hurley, os únicos registros fotográficos daquela empreitada polar.
Em formato de álbum de viagens, é uma abordagem delicada da história de Shackleton e dos 27 homens que lutaram pela sobrevivência, sem deixar de lado as intrigas entre alguns tripulantes e curiosidades da viagem.
Inferno gelado
Desde que o Endurance fora naturalmente detido, a vida daqueles homens virou um inferno gelado.
Caminhadas com gelo até os joelhos, comidas em pedaços de madeira que serviam de prato, líquidos bebidos em tampas de latas, e pele de pinguim e gordura de foca faziam funcionar o fogão adaptado.
“O que o gelo prende, o gelo não larga mais”.
A frase desanimadora de um dos tripulantes do Endurance anunciava o que viria pela frente. Ainda assim, Hurley conseguiu ver poesia em tudo aquilo.
Na primavera de 1915, ao sair com a câmera pela manhã, encontrou melhores condições de clima e descreveu aquela imensidão branca como uma “linda safra de flores de gelo formando-se nas veredas de mar aberto [que] lembravam um campo de cravos vermelhos.”
Enquanto o barco esteve à deriva no Mar de Weddell, algo em torno de 1.100 km segundo Caroline Alexander, Hurley se perguntava: “o que vai ser disso tudo?”
De acordo com Alfred Lansing, autor do primeiro livro sobre o assunto (“A incrível viagem de Shackleton” – ed. Sextante), publicado em 1959, o comandante só teria contratado Hurley por sua experiência anterior em uma expedição antártica sob comando de Douglas Mawson, três anos antes de embarcar no Endurance.
Foto noturna
A ordem de abandonar o navio ainda não tinha sido dada por Shackleton quando, no final de agosto de 1915, Hurley fazia as famosas e fantasmagóricas fotos noturnas do Endurance.
Para isso, espalhou cerca de 20 lâmpadas de flash por trás dos blocos de gelo, a uma temperatura externa de -32°. Segundo depoimento de Hurley em suas anotações, o fotógrafo sairia tropeçando na imensidão gelada com aqueles “clarões sucessivos”.
Assim que Shackleton se deu conta de que a luta contra o gelo estava perdida e ordenou que o navio fosse abandonado, Hurley, assim como toda a tripulação, começou a avaliar o que deveria ser descartado e o que seguiria na bagagem a ser levada nos trenós.
“Nada tinha o menor valor se comparado à sobrevivência”, avisaria o chefe da expedição.
No caso do fotógrafo, cerca de 400 negativos seriam deixados para trás. Com apenas 120 imagens, Hurley lamentava a “triste redução”, a fim de evitar peso nos deslocamentos seguintes.
No Acampamento Oceânico, uma das bases improvisadas sobre banquisas de gelo, o fotógrafo fez as últimas imagens com equipamento profissional, em novembro de 1915. Com as condições adversas que viriam pela frente, o fotógrafo teria que se contentar com uma Kodak de bolso e apenas três rolos de filme.
Dias mais tarde, Shackleton gritaria para o grupo: “Está indo embora”, enquanto o Endurance era tragado de vez pelo gelo. Começava ali uma das mais impressionantes lutas pela vida, cujo próximo pedaço de terra firme só seria avistado meses depois.
Desde dezembro de 1914, a tripulação já estava há quase 500 dias sem colocar os pés em terra firme.
Photoshop polar
Uma das críticas que foram feitas posteriormente à expedição se referem à manipulação que Hurley fez nas fotos que conseguiu trazer de volta. Como explica Caroline Alexander, imagens foram sobrepostas a registros de gelo vazio, em um sucessivo encaixe de cenas.
“A finalidade de suas fotografias sempre tinha sido comercial, e Hurley não parecia ter o menor escrúpulo quanto a esse tipo de manipulação”, descreve a escritora.
O exemplo mais conhecido da discutível técnica de manipulação é o registro dos 22 homens que ficaram à espera de resgate na Ilha Elephant.
Embora a imagem original tivesse o barco salva-vidas James Caird ao fundo, no dia em que partira para buscar ajuda na Geórgia do Sul, a foto era usada para ilustrar o dia do resgate com o rebocador Yelcho, dez semanas depois da partida de Shackleton e outros cinco homens.
O Caird teria sido “raspado da foto com violência”. Para Caroline, Hurley precisava de um fotografia que transmitisse sensação de clímax, “encerrando a história (…) necessária para as [futuras] palestras” sobre a experiência.
A técnica seria usada também em trabalhos posteriores à viagem no Endurance.
Nomeado fotógrafo oficial da Força Imperial Australiana, Hurley continuou alimentando sua excessiva “paixão por imagens compostas”, em registros de guerras e em expedições na ilha australiana da Tasmânia e na Papua Nova Guiné.
Durante dois anos, aqueles 28 homens viveram de esperanças e, até hoje, são protagonistas de uma das mais impressionantes histórias de sobrevivência.
Shackleton não sabia, mas se tornaria um exemplo de líder de sucesso, devido à sua capacidade de comandar, até o fim, uma viagem fracassada, porém sem nenhuma perda de vida.
SAIBA MAIS
“Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida”
Caroline Alexander
Editora Companhia das Letras
“A incrível viagem de Shackleton”
Alfred Lansing
Editora Sextante
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