Perrengues do presidente dos EUA no Brasil fazem 110 anos

Theodore Roosevelt podia até dominar batalhas navais e reformas políticas, mas nada prepararia o ex-presidente dos Estados Unidos para o que viria pela frente, nas selvas do Brasil.

Entre dezembro de 1913 e abril de 1914, o 26º líder dos EUA seria um dos integrantes de uma viagem que mapearia o Rio da Dúvida, curso d’água de extensão desconhecida, entre Rondônia e o Amazonas.

Liderada por ninguém menos que Cândido Rondon, o “Domador dos Sertões”, a Expedição Científica Rondon-Roosevelt durou (penosos) cinco meses, dos quais 48 dias sem ver um ser humano sequer naquelas florestas intratáveis.

Roosevelt e Rondon_dominio público
Roosevelt e Cândido Rondon (foto: Domínio Público)

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“O Coronel Rondon foi o mais insigne desbravador dos sertões brasileiros”, descreveria Roosevelt, o primeiro presidente estadunidense a visitar o país, em seu livro “Nas Selvas do Brasil”.

Naquela mesma visita ao continente, Roosevelt conheceu o Instituto Butantan, em São Paulo, onde foi recebido por Vital Brasil, comeu canja e carne de panela, no Pantanal, e ainda teve tempo de conhecer o explorador Francisco Perito Moreno, na Argentina.

Porém, o ex-presidente, que a princípio tinha em mente um roteiro de navegação pelo Rio Paraguai, tomou outro rumo quando, no Rio de Janeiro, foi convencido pelo então ministro das Relações Exteriores, Lauro Müller, a se juntar a uma expedição com um oficial do Exército “de sangue indígena”.

“[Müller] estava convencido de que a minha expedição seria de grande alcance para tornar o país mais conhecido no exterior”, escreveu Roosevelt.

Mas o melhor (e o pior) da América do Sul ainda estava por vir.


A Expedição Científica Rondon-Roosevelt

Em terras desconhecidas do miolo do Brasil, a natureza selvagem era a única opção de cenário naqueles sertões.

A comitiva com uma flotilha de sete canoas e 22 homens testou não só seus limites físicos como também mentais, em uma viagem com ataques de animais selvagens, encontro com indígenas, corredeiras mortais, doenças e uma floresta amazônica inteira que sempre cobra ingresso.

Assim como o rio a ser mapeado, tudo eram dúvidas.

Não se sabia se faltavam 100 ou 800 quilômetros nem se encontrariam indígenas hostis ou não. “Em conclusão, não tínhamos a menor ideia do tempo de duração da viagem”, concluiria Roosevelt.

E não foi por falta de aviso.

Da esq. para dir., sentados: Zahm, Rondon, Kermit, Cherrie, Miller, quatro brasileiros, Roosevelt e Fiala (foto: Domínio Público)

Desde o início, Rondon já tinha deixado claro que aquilo não era um safári, como aqueles a que Roosevelt estava acostumado na África, e sim uma “genuína expedição focada na ciência”, lembra o biógrafo Larry Rohther no livro “Rondon: uma biografia” (ed. Objetiva).

Acostumado aos “trabalhos de gabinete”, nas palavras de Rondon, e disposto a engordar a coleção de espécies animais do Museu de História Natural de Nova York, Roosevelt colecionou… perrengues.

Após machucar a perna direita em uma pedra afiada, ao ajudar a virar uma canoa, Roosevelt teve febres e uma infecção que o obrigou a ser operado ali mesmo, em plena Amazônia.

“Ninguém tem o direito de arriscar a vida dos companheiros para cuidar de seus próprios sofrimentos. Tem-se o dever de prosseguir, se necessário de rastros, até cair de uma vez”, escreveu Roosevelt em seus diários.

Excessivamente orgulhoso e confiante em sua habilidade de caminhar na floresta, Roosevelt, recém derrotado nas eleições de 1912 e com a saúde já comprometida, chegou até a sugerir que a comitiva o deixasse para trás, para morrer ali mesmo.

Theodore Roosevelt (foto: Domínio Público)

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Uma das dificuldades do grupo era a transposição das águas violentas de rios amazônicos, cujos redemoinhos, certa vez, tragou para sempre o remador Simplício e, por pouco, não levou junto o filho do presidente, Kermit Roosevelt, um jovem de 24 anos que vivia no Brasil, atuando como engenheiro em ferrovias do interior de São Paulo.

Das sete embarcações do início da viagem, cinco foram perdidas em rápidos e cachoeiras, obrigando a comitiva a construir outras novas. Em certos trechos, aqueles homens precisavam caminhar por dias por dentro da mata, arrastando canoas sobre “paus roliços”, impossibilitadas de seguir pelo rio.

Longas (e lentas) travessias, tripulação doente e refeição limitada – que chegou a ser sopa de tartaruga e carne de macaco – eram alguns dos perrengues que faziam os viajantes desafiarem a morte, constantemente, naquela aventura de “sabor esquisito”, “em terra estranha”, como descreve o prefácio de Apolônio Sales da 1ª edição do livro de Roosevelt em português.

Quando não eram os animais da comitiva, abandonados por estarem “imprestáveis de fraqueza”, eram as bagagens em excesso que deveriam ser deixadas para trás, como quando Kermit ficou sem sapatos, estragados pelo contato permanente com a água, e Roosevelt teve que se contentar apenas com a roupa do corpo, um pijama, um par de calças e outro de meias.

foto: Domínio Público

Sem dúvidas

Na confluência do Castanho e do Aripuanã, a viagem chegaria ao fim, em abril de 1914, quando o Brasil descobriria que aqueles mais de 1.400 km de águas eram na verdade um só rio, “o maior afluente do Madeira”.

Só em canoas foram dois meses de viagem, entre 27 de fevereiro e 26 de abril, um pouco mais de 750 km de travessia.

Wikimedia Commons

Pela primeira vez, a totalidade do rio da Dúvida era colocada nos mapas. E, para evitar dúvidas, passaria a se chamar Roosevelt, cuja placa indicativa com o novo nome foi colocada pelo próprio Rondon, no dia 27 de abril.

“Meu caro ministro, agradeço-lhe de todo o coração a oportunidade que me foi concedida de participar dessa grandiosa obra de exploração”, agradeceu o presidente dos Estados Unidos.

Mais de um século depois, em setembro de 2021, a ponte sobre o Rio Madeira, na BR-364, passaria a se chamar Rondon-Roosevelt que liga os estados de Rondônia e Amazonas, entre os municípios de Porto Velho (RO) e Humaitá (AM).

SAIBA MAIS

“Rondon: uma biografia”
Larry Rohter
(Editora Objetiva)

“Nas selvas do Brasil”
Theodore Roosevelt
(Edições do Senado Federal – volume 141)

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