Após simular loucura para se internar num hospital psiquiátrico e denunciar maus-tratos a mulheres, Nellie Bly escreveu um relato que, de tão cruel, parecia ficção.
Dois anos depois, essa repórter da Pensilvânia (EUA) foi na direção contrária e fez da ficção sua realidade. E, dessa vez, parecia mesmo coisa de maluca.
Pioneira do jornalismo investigativo por seu livro ‘Dez Dias no Manicômio’, onde descreve os horrores do Asilo de Mulheres Lunáticas, na atual Ilha Roosevelt, em Nova York, Bly queria desbancar a viagem do personagem fictício Phileas Fogg, em ‘Volta ao Mundo em 80 dias’.
Desejou então abraçar o mundo tal qual o protagonista do clássico de Júlio Verne. Em 80 dias, não, mas em 75, como sugeriu ao editor Joseph Pulitzer, do jornal New York World (ou em 72 dias, caso ela apertasse o passo).
Em pleno final do século XIX, Bly fez história (e jornalismo) num mundo masculino, onde mulheres não fumavam, não usavam calças e muito menos eram encorajadas a viajar por aí desacompanhadas.
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A vida imita a arte: a viagem de Nellie Bly
Entre novembro de 1889 e janeiro do ano seguinte, a repórter Elizabeth Cochrane Seaman, nome de batismo de Nellie Bly, correu contra o relógio para dar a volta ao mundo.
Tomou vapores, trilhou ferrovias e subiu em riquixás para provar que a estrada também é lugar de mulheres (e com bem menos bagagem do que os clichês machistas costumam pintar meninas viajantes).
O resultado é o delicioso ‘Volta ao Mundo em 72 Dias’, que em 2021 ganhou versão em português pela editora Ímã.
Cheia de certezas, Nellie Bly partiu com dúvidas sobre seu itinerário que, dias antes da viagem, sequer estava planejado. De Nova York (e do jeito que desse), viajou para a Inglaterra, uma travessia marítima de sete dias, para então seguir pela França, Itália, Egito, Iêmen, Ceilão (atual Sri Lanka), Malásia, Singapura, Hong Kong e Japão.
Já em Southampton, no Reino Unido, Bly ficaria sabendo que o próprio Júlio Verne gostaria de vê-la.
– “Que difícil é ter que declinar de tal alegria!”, respondeu, quando foi convencida de que o encontro não atrapalharia seus planos de abraçar o mundo.
E é aí que começa um dos trechos mais fascinantes de seu relato, onde a jornalista detalha o encontro com descrições físicas do sr. e da sra. Verne (“a figura mais encantadora daquele grupo ao redor da fogueira”), descreve o escritório do romancista e ainda fica sabendo de onde saiu a ideia do clássico ‘Volta ao Mundo em 80 Dias’.
– “Tirei isso de um jornal’, respondeu o escritor.
Só não ficou mais porque não podia perder o trem para Calais, o que significava atrasar a volta ao mundo em uma semana. Mais do que chegar, Bly tinha pressa de partir (“cada hora perdida contava para mim”, registrou em seu diário).
Rodar meio mundo só para conhecer Verne já teria valido a viagem. Mas ainda lhe faltava a outra metade do mundo.
Próxima parada: Brindisi, na Itália.
A mala de mão de Nellie Bly
Numa época em que mulheres estavam restritas à corte, costura e panelinhas, Nellie Bly provou que meninas também sabem viajar com pouca bagagem.
Com um único vestido xadrez para toda a travessia, o que obrigou Bly a recusar convites para “prazeres sociais”, a repórter viajou apenas com uma pequena mala de mão, onde colocou 2 boinas, 3 lenços, 1 par de chinelos, 1 roupão, 1 jaqueta, 1 garrafinha com copo, 1 pote de creme frio, lenços, objetos de armarinho e higiene, roupas íntimas e, claro, material para escrever.
“Nunca se conhece a capacidade de uma maleta de mão”, escreveu Bly sobre a peça que, por mais de dois meses, abrigou seu mundo em “tão pouco espaço”.
Determinada a não aumentar o volume na diminuta maleta de mão, não resistiu ao chapéu e ao lenço que comprou em Porto Saíde, no Egito, e um… macaco, comprado a caminho de mais um navio, em Singapura.
Nada mal para quem, um ano antes, teve que ouvir que para fazer aquela viagem era preciso ser homem e ter um acompanhante que carregasse tanta bagagem.
– “Muito bem. Mande seu homem e eu vou começar no mesmo dia por outro jornal, e vou vencê-lo”, respondeu com raiva.
Não só venceu como também conseguiu viajar pelo mesmo jornal ao qual tinha feito a sugestão de pauta.
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Os números da viagem
Entre países e as então possessões britânicas, Nellie Bly passou por 11 nações: EUA, Inglaterra, França, Itália, Egito, Iêmen, Ceilão (atual Sri Lanka), Malásia, Singapura, Hong Kong e Japão.
Dos 72 dias, 6 horas e 11 minutos da sua volta ao mundo, Nellie Bly se deslocou, de fato, durante 56 dias, 12 horas e 41 minutos. Nos outros, entregou-se a passeios de descobertas e dias preguiçosos em convés de navios.
No total, a viagem levou 1.734 horas e 11 minutos, a uma velocidade média de 45,06 km/h.
Para visitar Júlio Verne, desviou 288 quilômetros até Amiens, no norte da França.
Bly passou por 3 oceanos (Atlântico, Índico e Pacífico), 2 canais (da Mancha e de Suez), 6 mares (Adriático, Jônico, Mediterrâneo, Vermelho, da Arábia e da China), 2 golfos (de Suez e de Áden), 2 estreitos (de Bab el Mandeb e o de Malaca) e 2 baías (a de Nova York, na ida, e a de São Francisco, voltando do Japão).
Japão: o queridinho de Nellie Bly
Querendo escrever um livro inteirinho sobre a experiência no Japão pós-Revolução Meiji, Bly escreveu o maior e mais detalhado capítulo de seu livro.
As descrições da vida cotidiana naquela “terra de amor-beleza-poesia-limpeza” parece até ter feito a viajante se esquecer que estava numa corrida contra o tempo. Só se arrependeu de não ter adquirido uma Kodak portátil, lançada no ano anterior à sua viagem.
“Não encontrei nada que não fosse um requintado deleite dos sentidos enquanto estive no Japão”, resumiu antes de iniciar a travessia do Pacífico até a costa oeste dos EUA.
Durante a volta ao mundo, Bly também paralisou diante de um cortejo de camelos, no Egito, se decepcionou com o Canal de Suez (“a única coisa que animava era o aparecimento de árabes nus que corriam pelas margens do canal”) e se surpreendeu com os branquíssimos dentes da população de Áden, polidos com galhos de árvores, uma escova de dentes natural conhecida como miswak.
A edição brasileira de ‘Volta ao Mundo em 72 Dias’ traz um posfácio com uma breve e detalhada contextualização de cada uma das regiões ou países por onde Nellie Bly passou, como o apogeu econômico do Reino Unido e o Canal de Suez, na época, em um Egito sob domínio britânico.
A arte imita a vida: a 1ª viagem da lunática Nellie Bly
Antes de dar ao volta ao mundo, porém, Nellie Bly precisou recorrer à arte de ser louca para dar outro rumo à vida.
Em 1887, ela ficou conhecida por ter se internado no temido hospital psiquiátrico da Ilha Blackwell, atual Ilha Roosevelt, em Nova York, com o objetivo de escrever uma reportagem sobre as condições desumanas do Asilo de Mulheres Lunáticas.
“Louca demais para dizer qualquer coisa de relevante”, conforme o diagnóstico de um dos médicos do primeiro manicômio das Américas, a repórter simulou sua insanidade durante 10 dias dentro daquela “ratoeira humana”, onde uma vez lá dentro, era impossível sair.
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As ditas “loucas” da ilha eram geralmente mulheres pobres ou estrangeiras que mal podiam se comunicar em inglês, daí o constante diagnóstico de confusão mental, entre tantas outras maluquices de médicos despreparados.
Em ‘Dez dias no Manicômio’, que no Brasil ganhou versões em português pelas editoras Ímã e Fósforo, Bly faz uma descrição nua com “palavras simples e sem exagero” sobre mulheres tomadas por uma loucura que, a conta-gotas, era plantada naquelas mentes sãs.
Seu sentimento de conquista pela pauta só era derrotado quando Bly se encontrava com outras internas que, assim como ela, não deveriam estar ali. Como descreveria a repórter, “elas não tinham a esperança de uma rápida passagem”.
Nem Nellie Bly.
Ao receber a pauta do editor Joseph Pulizter, em 1887, a jovem repórter questionou:
– “Como vão me tirar de lá?”
– “Não sei ainda. Entre e nós veremos como tirá-la de lá”, respondeu Pulizter.
Trazida de volta ao mundo “são” por advogados do jornal, Bly seria também chamada para depôr no tribunal, cujo relato resultaria, ao menos por um período, em melhores condições para as internas do manicômio.
Assim, Nellie Bly cumpria o que até hoje deveria ser a função de um jornalista: investigar os fatos em prol do outro, e não a favor do próprio ego. Sua carreira de jornalista nunca mais seria a mesma.
SAIBA MAIS
“Volta ao Mundo em 72 dias”
Nellie Bly
290 páginas
Valor sugerido: R$ 56
Editora ÍMÃ
“10 dias no Manicômio”
Nellie Bly
206 páginas
Valor sugerido: R$ 45
Editora ÍMÃ
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ela foi muito corajosa. ja os invejosos chamam ela de louca