* este texto abre a série de especiais que o Viagem em Pauta publicará em comemoração aos 35 anos da queda do Muro de Berlim, em novembro de 2024
No mesmo ano em que a queda do Muro de Berlim completa 35 anos, O Verde violentou o muro, livro em que o escritor e jornalista Ignácio de Loyola Brandão relata sua experiência na cidade alemã dividida, celebra quatro décadas de sua 1ª edição.
Na mão desse Imortal, tudo é história.
Ignácio é o escritor de tudo que passa diante dos olhos. Das formigas que escalam até o 13º andar de um edifício ao outdoor com um zero gigante estampado no centro.
VEJA TAMBÉM: “Dicas de livros para quem gosta de viajar”
A Berlim que Ignácio viu
Entre março de 1982 e agosto de 1983, Ignácio de Loyola Brandão morou na capital da Alemanha, a convite da DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico, em tradução livre do alemão). Da experiência nasceu a obra O verde violentou o muro, publicada pela primeira vez em 1984.
Mapeou a cidade com a mesma habilidade de quem montava um Mapograf, a fim de vê-la revelada. Em 84 caderninhos, o escritor registrou desde o conserto do vaso sanitário do apartamento alemão onde morou às viagens aleatórias de ônibus, a fim de ganhar novas histórias.
Por isso, dá para ler o livro a partir de qualquer capítulo, de forma aleatória, “como se você pegasse um trem numa estação qualquer […] e descesse onde bem entendesse”.
Eis a habilidade de um escritor em unir histórias de tempos dispersos, dentro da “intemporalidade que Berlim possibilita”.
“Dizem tanto sobre essa cidade. Quanto tempo para verificar tudo?”
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
Ignácio viu também o que muito gente também vê, ainda que, hoje, sob roupagem turística.
Viu o Checkpoint Charlie da checagem de documentos, na Alemanha Oriental, a imponência do Portão de Brandemburgo, a agitada Alexanderplatz, o Spree, a versão berlinense dos rios Sena ou do Tâmisa, e até os Trabi, os famosos automóveis compactos da era socialista.
Já o tal muro causou-lhe espanto e decepções: “não era tão alto como eu esperava”.
De Berlim a Araraquara
Sobre sua temporada na cidade, Ignácio chegou a dizer que, ali, “você é normal sendo diferente”. Mas o que esse brasileiro mais viu era aquilo que ninguém via (ou se via, parecia-lhe normal).
Por um ano e meio, viveu a “normalidade do anormal”, desde que preservada a tão cultivada individualidade alemã.
Mesmo para o escritor das sobrancelhas grossas sobre olhos que parecem ter visto de tudo, a cidade alemã dividida também lhe causava estranheza. “Para viver em Berlim é necessário cancelar espantos”, define em outro trecho do livro.
Nas suas caminhadas pela cidade, ia de Berlim a Araraquara, transportando-se dos dias silenciosos em um bosque berlinense para as tardes na sua cidade natal, no interior paulista.
Do cartaz de moças seminuas da boate Chez Nous, na rua Marburger, faíscas de pensamento o levavam também à Araraquara dos anos 50, chocada à época com a revista Manchete que trazia na capa a travesti Yvana, o “homem-mulher”, nas palavras do próprio Ignácio.
Outra lembrança retratada no livro é o diálogo de tom almodovariano com uma prostituta na Potsdamerstrasse, quem lhe cobrou cinco francos pelo diálogo insólito que tivera com o possível cliente, que finalizou a conversa sem fechar negócio.
E, mesmo em um mundo novo tão diferente daquele do menino curioso da inerte Araraquara, Ignácio encontrou semelhanças com a sua própria história (e a de um país inteiro), em vias de sair de uma ditadura militar.
“Na Alemanha, deixavam morrer nos campos de concentração. No Brasil, deixamos morrer na caatinga, na favela, no interior amazônico, com a mesma impassibilidade”, comparou.
Loyola em números
Ignácio chegou em Berlim pela primeira vez no dia 11 de março de 1982, num mesmo 11 de março em que deixou Araraquara, porém, em 1957. Voltou a Berlim também em um 11 de março de… 2000, mas só seria reconhecido como imortal num 14 de março, com três dias e alguns anos de atraso.
Curioso, voyeur e com dois pés, assumidamente, no submundo, Ignácio não deixou nenhuma Berlim lhe escapar aos olhos e foi colecionando estatísticas (uma obsessão por números que, diz, herdou do pai).
Na época de sua visita, a capital alemã tinha 90 mil cachorros (o que significava recolher 850 kg de cocô do animal), segundo números levantados pelo próprio escritor. E eu duvido que, hoje em dia, um jornalista seria capaz de apurar dados tão precisos.
No livro, refere-se também a um aumento de 33% no número de casos de enxaqueca e dores de cabeça, motivado pelos males do Ocidente. Sem falar da novidade da declaração de imposto de renda para os alemães orientais.
Para cada rua, Ignácio anotou o número exato do ônibus que passava pelo logradouro. Para visitar um dos endereços em que Franz Kafka morou em Berlim, por exemplo, ele avisa: basta descer no ponto final da linha 48, na Busseallee, antiga Heidestrasse.
LEIA TAMBÉM: “Viagens históricas incríveis que você precisa conhecer”
De volta a Berlim
Em seu retorno à cidade, em 2000, a cidade já não era o eterno domingo pela manhã, dessa vez, marcada pelo consumismo que veio com a identidade turística que a cidade ganhou.
“Querem os restos de um país morto”, espantou-se com a venda de pedaços do muro derrubado.
De volta à cidade, frustrou-se mais com o surgimento das modernidades da unificação do que com o que viu no período da cidade dividida pelo muro.
“O que era, não é mais”. Foi-se o muro e, com ele, a tranquilidade. Berlim Oriental tinha virado gente grande.
“Sempre volto com a sensação de nunca ter estado em Berlim”, confessaria, anos mais tarde.
SAIBA MAIS
O verde violentou o muro
Ignácio de Loyola Brandão
editora Global
400 páginas
R$ 65
globaleditora.com.br
Seja o primeiro a comentar