“Como é que você vai transformar o mundo sem estar lá dentro?”, questiona Kátia Bogéa, diante do grupo de visitantes que acompanha as obras do futuro Museu Nacional do Azulejo, no centro histórico de São Luís, capital do Maranhão.
No caso do convite proposto por essa historiadora, há 45 anos trabalhando com patrimônio histórico, a viagem tem surrealismo tropical, azulejos históricos e reggae agarradinho ao som de radiolas gigantes.
Terra de boi que ressuscita e de dança circular de batida acelerada, a capital maranhense vem investindo em atrativos que vão além dos tradicionais Bumba Meu Boi e Tambor de Crioula.

Conhecida também como a Cidade dos Azulejos, São Luís é considerada a primeira do mundo lusitano a revestir suas fachadas com essas peças.
Um dos projetos recentes mais ambiciosos é o Museu Nacional do Azulejo. O local, que teve um investimento de R$ 31 milhões, deve reunir uma coleção de três mil peças feitas com diferentes técnicas, entre os séculos IX e XIX.
Logo na entrada, o público será recebido com uma obra da artista plástica Adriana Varejão, com azulejos trazidos de Portugal, e com um lustre assinado pelo designer Humberto Campana. Um dos destaques será o andar dedicado à azulejaria brasileira, com peças de Candido Portinari, Burle Marx e Francisco Brennand.
“É um projeto que não apaga o prédio”, conta Bogéa, em referência ao Palacete da Rua Formosa, construção de 1820 que irá abrigar o museu, cuja inauguração está prevista para agosto de 2026.
Se para a concepção do museu foi preciso olhar para dentro, para alguns artistas, a viagem é feita em outros terreiros.

Com uma carreira de mais de duas décadas e obras expostas em Cuba, EUA, França, Áustria e Suécia, o artista visual Thiago Martins de Melo ganhou sua primeira individual na própria cidade, no último mês de agosto. Cosmogonia Colérica tem curadoria de Germano Dushá e reúne 21 obras de diferentes dimensões, como pinturas, esculturas e instalação, produzidas entre 2013 e 2025.
“É um movimento de volta que não só faz justiça à minha trajetória e à influência de São Luís e do Maranhão em minhas criações como também funciona para energizar certos debates e processos envolvendo arte contemporânea”, analisa Melo, em depoimento para o Viagem em Pauta.
Para Ana Carolina Coelho, head de responsabilidade social e comunicação do will bank, patrocinador da exposição, a proposta “é conhecer talentos do Brasil que, muitas vezes, o mundo inteiro já conheceu, mas o brasileiro ainda não conhece nem valoriza”.
“É como visitar o futuro, pois acreditamos que São Luís é o lugar que vai explodir [como centro artístico], nos próximos anos”, compara Coelho.

São Luís além do Bumba Meu Boi
Monumento à Diáspora Africana
Esse espaço inaugurado em novembro de 2023, na Praça das Mercês, onde ficava o antigo porto de desembarque de negros escravizados, abriga oito painéis de 6m x 4,80 feitos por artistas do Maranhão, em memória à cultura negra que formou a identidade do povo maranhense.
Entre os nomes que assinam trabalhos no local estão Gê Viana, artista visual do município de Santa Luzia, conhecida por suas colagens históricas e que terá obra exposta na 36ª Bienal de São Paulo, a partir do próximo dia 6 de setembro.
“Eu comecei a entender o arquivo histórico dentro do meu trabalho pensando na minha própria identidade. É sobre o que eu vivo aqui, sobre a minha convivência com o meu povo, com as relações de afeto e os rituais dos quais eu participo”, conta Gê sobre o diálogo entre sua própria experiência e obras dos pintores como Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas.

Centro Histórico Praia Grande
Após décadas de abandono, o setor histórico de São Luís é Patrimônio Mundial desde 1997 e reúne cerca de 1.500 imóveis, alguns deles com arquitetura que remonta ao plano regulador da cidade feito pelo arquiteto português Francisco Frias de Mesquita, em 1615.
Assim como lembra Kátia Bogéa, que é também presidente da FUMPH (Fundação Municipal de Patrimônio Histórico) de São Luís, a capital maranhense “é a única cidade brasileira de traçado espanhol”, famoso por seu quadriculado em forma de tabuleiro de xadrez, e abriga o maior centro contínuo do gênero em termos de quantidade de construções históricas, em toda a América Latina.
A concentração turística acontece ao redor do Mercado das Tulhas, onde estão restaurantes e lojas de produtos como artesanato, cerâmica e roupa. Já a Praça Nauro Machado tem duas estátuas em homenagem aos primeiros pregoeiros da cidade, como são conhecidos os ambulantes que vendem seus produtos entoando cantos, como Dona Corina, vendedora de doces, e os tradicionais sorveteiros com suas caixas de madeira.
Porém, quem caminha pelo centro histórico de São Luís pode se frustrar com aquele misto de belos casarões bem preservados e outros em estado de total abandono. Além da escassez de investimentos na área de preservação, Bogéa atribui o desinteresse patrimonial aos baixos índices de alfabetização do Maranhão.
“Se você tem índices educacionais baixos, a população dificilmente vai conseguir compreender o patrimônio e preservá-lo. O patrimônio arquitetônico precisa de conhecimento para ser apropriado, tanto por parte de gestores e governantes como da população”, diz a historiadora.

Rua da Estrela
Essa via no centro histórico é endereço de três pequenos museus temáticos com entrada gratuita.
No número 83 fica o Museu da Gastronomia (@museudagastronomiamaranhense), o segundo museu do gênero no Brasil, depois do de Salvador, na Bahia. O espaço é dedicado à comida maranhense e traz cenografia que recria ingredientes e ambientes gastronômicos, como a mesa que representa um banquete de etnias que fizeram a história do estado. Destaque para a divertida e bem informativa visita guiada por Marioca.
A poucos metros dali, no número 124, está localizado o Museu do Reggae (@museudoreggae), o gênero musical jamaicano que ganhou a versão maranhense conhecida como “reggae agarradinho” ou também “A2” ou “coladinho”, devido à dança em pares.
A (apressada) visita guiada passa por quatro espaços expositivos em referência aos bairros mais regueiros de São Luís, como a Jordoa, um dos mais antigos da cidade e endereço do primeiro clube de música da capital maranhense.
A história do reggae local não pode deixar de ser contada também sem a tradicional radiola, aparelhagem que forma o”paredão” de caixas de som potentes que animam os bailes dedicados a esse gênero musical.

Na altura do número 308, a Rua da Estrela tem também a bela Casa do Tambor de Crioula (@casadotambor_), localizada num sobrado histórico que traz ao público elementos dessa manifestação afro-brasileira de data desconhecida, como vestimenta, toques e dança em roda.
Esse Patrimônio Cultural do Brasil pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) marca a resistência cultural dos negros maranhenses, através de rodas animadas pelo som acelerado da percussão, conhecida como parelha, e palmas das mãos que ditam o ritmo para a cenografia dos cantadores e dançarinas, famosas por saudações feitas com a barriga, chamadas de umbigada ou punga.
Roteiro Quilombo Cultural de São Luís
Esse roteiro turístico aborda a influência do povo africano na capital maranhense, desde sua fundação pelos franceses, em 1612, até a criação do maior quilombo urbano da América Latina, formado por bairros como Camboa, Liberdade, Fé em Deus e Diamante.
Em 2h de passeio, o visitante passa por locais como o Mercado Municipal da Liberdade, Terreiro llé Ashé Ogum Sogbô e pelo barracão do projeto Bumba meu Boi da Floresta, fundado em 1926 por Apolônio Melônio.
Desde 2019, esse folguedo é Patrimônio Cultural Imaterial pela UNESCO.
O roteiro acontece das 9h às 11h e tem saída na Central de Atendimento ao Turista (CAT), na Feirinha São Luís (Rua do Giz, 533-585 – Centro).

Cosmogonia Colérica
Em cartaz até o dia 10 de outubro de 2025 no Convento das Mercês e no Chão SLZ, ambos no Centro Histórico de São Luís, a exposição leva ao público alguns dos trabalhos mais emblemáticos das duas décadas da carreira do artista Thiago Martins de Melo.
As obras de grande impacto visual trazem entidades espirituais, imagens sensuais, corpos em transmutação e episódios históricos.
Porém, sem se apegar a um período histórico específico, o artista faz das suas pinturas um espaço de reflexão sobre fatos que ainda assombram o lado de cá do planeta, como a tapeçaria Cavaleiro de Copas (2017), uma colagem de fogaréus, militares e tanques de guerra que formam uma espécie de alegoria que confronta “a máquina histórica de opressão que se perpetua desde a colonização do território brasileiro”.
Para ele, que é um dos fundadores do Chão SLZ, espaço da cena independente de arte contemporânea no estado, a arte contemporânea pulsante na cidade é uma das iniciativas que suprem “a precariedade histórica”.

“Se estou tratando do estupro colonial eu vou, sim, colocar certos referenciais históricos imagéticos que povoam o inconsciente da população em geral, porém eu também vou colocar ali as formas de resistência que se dão através da própria espiritualidade. E esse é um outro processo, também violento, que marca um certo apagamento original”, explica o artista.
Marcada pela justaposição de imagens e pela polissemia, sua obra se debruça sobre o surrealismo para abordar temas concretos como a violência contra povos indígenas e comunidades negras, colonização e religião, e as atuais tensões sociais e políticas.
“Assim como os surrealistas do início do século XX, Thiago recorre a imagens que parecem vir do sonho, do inconsciente e da alucinação. Suas telas são densas em símbolos, figuras híbridas, metamorfoses e justaposições visuais que desafiam a lógica racional”, descreve Marco Lima.
Como lembra esse galerista, o Maranhão viveu na década de 1970 uma intensa experimentação, como o surrealismo que inspirou jovens artistas da época que rompiam com os padrões tradicionais do academicismo e resistiam à então ditadura militar instituída no Brasil.

“Muitos artistas criaram uma espécie de ‘surrealismo tropical’, em que cenas do cotidiano maranhense eram atravessadas por imagens fantásticas, misturando realidade social e imaginário popular, em obras de artistas como Newton Sá e Nagy Lajos”, diz Lima.
No entanto, mais do que copiado no Maranhão, aquele mundo fantástico foi reinterpretado tal qual a viagem interior proposta no início deste texto.
SERVIÇO
Cosmogonia Colérica, exposição de Thiago Martins de Melo
De 13 de agosto a 10 de outubro de 2025
Convento das Mercês (R. da Palma, 502 – Desterro) e Chão SLZ (R. do Giz, 167 – Centro)
Entrada gratuita
* O jornalista Eduardo Vessoni viajou a convite do will bank
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