Koch-Grünberg: o viajante que redescobriu o Brasil e inspirou ‘Macunaíma’

Quando Theodor Koch-Grünberg esteve em Manaus (AM), achou a cidade irreconhecível. Naquele começo de século, nem os brasileiros conheciam o próprio país.

Desde 1899, esse pesquisador alemão de Grünberg já andava em expedições pelo Brasil, mas a mais famosa delas seria a viagem entre a bacia do rio Branco e as nascentes do Orinoco, entre 1911 e 1913.

Para lembrar o centenário da morte desse etnógrafo, vítima de malária, lá nas bandas de Caracaraí (RR), o Viagem em Pauta relembra a viagem de Koch-Grünberg, na Venezuela e no Norte do Brasil. Dessa experiência sairia ‘Do Roraima ao Orinoco’, livro em três volumes publicados no Brasil, pela primeira vez, em português, pela Editora Unesp.

Editora Unesp/Divulgação

“[O paradeiro dele] é uma questão politica na região. Koch-Grünberg sempre foi um personagem polêmico porque via a população indígena com olhos simpáticos. Por isso, existe uma certa resistência, uma desconfiança”, lembra Jézio Hernani Bomfim Gutierre, diretor-presidente e publisher da Fundação Editora da Unesp, em entrevista por telefone.

E ainda que o local exato de sua morte seja ignorado, até hoje, “para que ele não fosse reverenciado pelo que fez”, você conhece a seguir as delícias (e as dores) de viajar nos confins da Amazônia.


Terra adentro é tudo terra incógnita.”

Theodor Koch-Grünberg em ‘Do Roraima ao Orinoco’
(Editora Unesp)


Monte Roraima

Esse viajante alemão esteve em lugares encantados, onde “índio nenhum ousa entrar”, navegou rios temidos pelas “febres terríveis” e se hospedou em cidades emboloradas e enferrujadas pela umidade.

Mas seu relato mais apaixonado vem do alto do Monte Roraima, atualmente, um cobiçado destino de trilhas, na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Para Koch-Grünberg, aquele enorme castelo de cume plano, por vezes ocultado por nuvens, era um “quadro indescritivelmente grandioso, que jamais se esquece”.

Foi ali que ele se encantou também com rochas que pareciam cogumelos gigantes, lutou para fazer fotografias num lugar chuvoso de “iluminação sombria” e esteve a beira do abismo, quase que antecipando o fim da viagem.

Mais do que relatos heroicos ou aventureiros, suas experiências na região seriam pioneiras em áreas como a fotografia antropológica e o mapeamento linguístico dos Karib. O explorador seria também o primeiro etnógrafo a descrever práticas xamânicas na Amazônia.

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“Sem Koch-Grünberg, o Brasil não se veria da maneira como somos vistos. O que ele identificou faz parte dessa nossa auto-imagem. Ele fez o próprio Brasil ser visto e existir”, analisa Gutierre, que acredita também que o alemão possa ter sido responsável por uma das primeiras gravações cinematográficas feitas no Brasil.

Para o filósofo e antropólogo Agenor Vasconcelos, em entrevista para o Viagem em Pauta, os relatos de Koch-Grünberg não eram apenas de importância histórica, mas também “uma matriz de ideias”, a partir de dados, fotos e descrições valiosas sobre aquele Brasil que mal se conhecia além das próprias capitais e do litoral.

“É um repertório criativo que oferece elementos da cultura, tanto para os próprios indígenas quanto para a gente criar e redescobrir o nosso país, a partir da perspectiva dos povos brasileiros”, diz Vasconcelos, que atualmente é professor colaborador do programa de pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, na UFAM (Universidade Federal do Amazonas).

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No entanto, Vasconcelos lembra que o alemão, na verdade, “não estava interessado na integração dos povos indígenas, mas em fazer coleção”.

Ou, em alguns casos, roubar.

Em 2013, esse professor refez trechos de duas viagens do alemão, da foz do Rio Içana até comunidade de Cumaracapai, na Venezuela, e chegou a recolher relatos de que o estrangeiro teria retirado objetos sem autorização, na expedição que fez entre 1903 e 1905.

“Ele levou amostra de cabelo de mulheres, o que gerou revolta no povo de São Gabriel da Cachoeira, e também um baú de uma família Tariana, em Yauretê, no Alto Rio Negro, com máscaras, instrumentos e objetos sagrados que a avó da informante quer de volta até hoje”, conta sobre seu projeto ‘Música das Cachoeiras’.



Koch-Grünberg: Amazônia raiz

Nos cerca de dois anos que o viajante esteve na Amazônia, perrengues não faltaram, muitas vezes, encarados com bom humor.

Entre períodos de escassez e de fartura de comida, o alemão sempre fazia referência aos produtos Maggi (sim, aqueles das sopas e dos caldos em tablete) que carregava entre seus provimentos.

Para convencer os indígenas a comer aquelas refeições pré-preparadas, Koch-Grünberg explicou que aquilo era a tapioca da sua terra. Ele só lamentou não ter “cubinhos de pão torrado”, como sugeria o fabricante.

Eis a Amazônia servida sem croûton.

Aliás, a alimentação é algum dos temas mais citados nos diários, como a sopa de rã cozida com pele e tudo (“um caldo verde e insosso”) e alimentos como beiju, molho de pimenta e sopa de farinha.

Tinha também carne de piranha e cozido de jacaré, “de sabor muito duvidoso, para não falar do preparo imundo”; e as nuvens de mosquitada que tiravam o sossego do estrangeiro, tal qual Mário de Andrade, mais de uma década depois.

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A expedição terminaria em março de 1913, quando o alemão, que já tinha até sido dado como morto, por conta da falta de notícias, chegou ao porto de Manaus. Recebido calorosamente pela colônia alemã, aquele europeu seminu com roupas em farrapos surgia com uma “aparência miserável”, camisa furada e uma única cueca.

De acordo com Vasconcelos, o objetivo da expedição não foi alcançado, já que os guias Yekuana que guiavam Koch-Grünberg eram inimigos dos Yanomamis, cujas terras altas abrigavam as nascentes do Orinoco.

Ainda assim, Koch-Grünberg veria um Brasil que a gente já tinha, mas não sabia.

“Ele nos mostra como a formação do Brasil é complexa e problemática. Mas, naquele momento, estava sendo criada a partir de uma perspectiva estrangeira, apesar de uma certa afeição por aqueles povos”, conclui o professor da UFAM.

Nem Mário de Andrade ficaria de fora daquele caldeirão todo.


Ai que preguiça!

Antes mesmo da viagem pela Amazônia que daria outros rumos ao seu ‘Macunaíma’, em 1927, o escritor paulistano já andava metido naquelas coisas de lendas e músicas indígenas.

Os “maldizentes” até chegaram a dizer que Mário teria copiado o alemão para criar sua obra mestra, mas ele não negou que seu herói tinha surgido da leitura dos diários de Koch-Grünberg, devorados por Mário com seu “alemão de dois centímetros”.

“Copiei, sim”, escreveu numa carta para Raimundo Moraes, quem defendia a originalidade amazônica de Mário. “Eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo”, cravou.

Assim como tão bem definiu Câmara Cascudo, o Macunaíma de Mário é o resumo do Brasileiro, assim mesmo com maiúscula, para falar daquela mistura toda. “Todo Brasil está ali”, escreveu o potiguar numa das tantas cartas trocadas com o paulistano.

Mário, que tinha “fome de Norte”, temendo ficar regional, se tornou nacional.

Mário, em Belém (foto: MASP/Divulgação)

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“Justamente pelo interesse em entender o Brasil, Mário de Andrade tinha essa necessidade de ler exploradores, e isso fez com que ele imaginasse ‘Macunaíma’ a partir daquele mundo. Koch-Grünberg foi muito importante para ele”, compara o publisher da Fundação Editora da Unesp.

Aliás, numa daquelas sincronias que só a literatura é capaz de oferecer, o viajante alemão chegou a batizar de Mário um jovem Makuschí da comitiva que o guiava.

Já no segundo volume de seus relatos, Koch-Grünberg reuniu mitos e lendas coletados “nas horas ociosas” com os Taulipáng e os Arekuná, como o da ‘Árvore do Mundo’, narrada por Arekuná Akúli, sobre a história de Makunaíma, o mais moço e safado dos irmãos.

‘Do Roraima ao Orinoco’ é livro para não querer largar, dessas prosas leves que conversam com todos os públicos, seja pesquisador ou leitor interessado pelas cousas nossas.

Mas por pouco aquilo tudo não era apenas lenda (em alemão).

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A edição brasileira

O etnólogo e explorador Theodor Koch-Grünberg esteve quatro vezes no Brasil: em 1898, num tributário do rio Xingu; em 1903, no Alto Rio Negro; em 1911, em busca das nascentes do Orinoco; e em 1924, na fatal viagem em que ele morreria de malária, em Caracaraí, outra vez, em busca do Orinoco.

Suas experiências de 1911 seriam publicadas em alemão, seis anos depois. Porém, o Brasil só teria sua primeira trilogia de ‘Do Roraima ao Orinoco’, em 2022.

“A importância do trabalho foi reconhecida, mas ninguém se atrevia a publicá-lo [em português]. O livro tem muitas dificuldades para resolver e precisa de um time de especialistas. É jornada difícil porque lida com diversos termos botânicos, zoológicos e linguísticos”, justifica Gutierre sobre os longos anos de espera para ter a obra em português.

Escrito, originalmente em cinco volumes, a Editora Unesp lançou apenas três deles, incluindo boa parte do quinto volume. “O quarto [volume] é de um dificuldade técnica insana. Até para a etnolinguística seria um trabalho difícil de tradução, pois seu valor científico já está muito ultrapassado”, conta o publisher .

Já a Amazônia ainda parece novidade para o resto do Brasil.

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SERVIÇO

Do Roraima ao Orinoco: Resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913
Autor: Theodor Koch-Grünberg
Tradução: Cristina Alberts-Franco

Volume I – 2ª edição: Descrição da viagem (2022)
376 páginas
Preço: R$ 178

Volume II: Mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná
295 páginas
Preço: R$ 167

Volume III: Etnografia
414 páginas
Preço: R$ 184

Saiba mais: editoraunesp.com.br

* Esta matéria é uma escolha do editor do Viagem em Pauta e não tem nenhum vínculo editorial ou comercial com a editora.

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