Mário (sai do armário) de Andrade, em exposição queer no MASP


Mário de Andrade dizia ser dotado de uma certa bivitalidade, algo entre a moralidade da “vida de cima” e os prazeres da “vida baixa”.

Tímido e discreto, esse escritor paulistano não imaginaria, porém, que sua sexualidade ainda despertaria interesse, quase 80 anos depois de sua morte.

Na próxima quinta-feira, 22 de março, o MASP (Museu de Arte de São Paulo) inaugura Mário de Andrade: duas vidas, primeira exposição a abordar o olhar queer do pai de Macunaíma, uma seleção de 88 peças do acervo do IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros), entre imagens sacras e obras de arte reunidas pelo escritor-colecionador.

foto: Reprodução

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De desenhos a gravuras de seu acervo particular, alguns apresentados ao público pela primeira vez, a exposição traz também fotografias feitas pelo próprio Mário com sua inseparável “Codaque”, nas históricas viagens às Amazônias brasileira e peruana, em 1927, e ao Nordeste, entre 1928 e 1929.

“Da mesma forma que a questão racial [do Mário] foi um tabu, durante muitos anos, o mesmo aconteceu com a sexualidade dele”, compara a curadora Regina Teixeira de Barros, em entrevista exclusiva para o Viagem em Pauta.

Ainda que o escritor fosse considerado à frente de seu tempo, discussões levantadas por ele, como preservação do patrimônio histórico e valorização da cultura popular, ainda são assuntos mal resolvidos no Brasil. Em se tratando de sexualidade, então, a exposição no MASP não poderia ser mais atual e necessária.

“Ao falar desse assunto, se desfaz um pouco essa homofobia estrutural que a gente vive. Não falar da sexualidade do Mário significa silenciar e colaborar com essa estrutura social mais engessada”, analisa a curadora.

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Mário sai do (ar)Mário

A exposição Mário de Andrade: duas vidas está dividida em três núcleos temáticos.

O primeiro tem retratos feitos por artistas como Lasar Segall, Candido Portinari e Tarsila do Amaral, com suas “pinturas de um Mário oficial, conhecido e divulgado”, como explica Regina.

O outro expõe figuras religiosas adquiridas por esse colecionador de arte compulsivo, a ponto até de se endividar, que chocou a família católica quando chegou em casa com a escultura de um Cristo de tranças, assinada por Victor Brecheret.

– “Onde se viu Cristo de trancinha! Vosso filho é um perdido mesmo”, estrilou uma velha tia.

“São imagens canonizadas pela historiografia da arte, mas que você pode contemplá-las sob um olhar gay”, analisa a curadora.

O público poderá ver também a seleção de fotografias que o antiviajante fez de trabalhadores, em suas viagens pelo Norte e Nordeste brasileiros, alguns deles com o corpo semi nu, como a de um homem subindo num coqueiro só de bermuda.

A exposição, que tem curadoria de Regina Teixeira de Barros e assistência de Daniela Rodrigues, faz parte da programação anual do MASP dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+. No mesmo dia, o museu inaugura também Francis Bacon: a beleza da carne, com mais de vinte obras desse pintor irlandês que levou o mundo queer para as artes visuais.

“[A carne] é a própria materialidade de nossa existência ‘em carne e osso’, mas também é ícone do desejo carnal, do instinto natural do corpo”, analisa Laura Cosendey, curadora assistente da exposição de Bacon.

Mário em Tefé, no Amazonas, em 1927 (foto: Divulgação)


Mário de Andrade queer

Embora já se ouvissem comentários entre “comadres modernistas”, a sexualidade de Mário voltou a ser discutida, em 2015, dez anos depois de seu “gigantismo epistolar” ser liberado para a gente dar uma espiada.

Na época, o motivo foi a consulta pública à uma carta para Manuel Bandeira, em que o paulistano abordava o assunto. Antes de morrer, em 25 de fevereiro de 1945, Mário deixou instrução para que suas cartas em pastas ficassem lacradas por 50 anos, a contar da data de sua morte.

Até 1968, o cobiçado material ficou lacrado em uma estante da casa do escritor, na rua Lopes Chaves, na Barra Funda, bairro da zona oeste de São Paulo.

Naquele mesmo ano, o acervo de Mário, incluindo livros e coleção de artes popular e religiosa, seria adquirido pela USP para compôr o patrimônio marioandradiano do IEB, tombado pelo IPHAN (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional), desde 1995.


“Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e eu elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade?


carta para Manuel Bandeira – 7 de abril de 1928


Uma moreninha aqui, uma americaninha ali. Mário dos amores eternos e das farras com as garçonetes da Santa Efigênia pouco tocou no assunto, como na carta de “proporções indiscretas” para sua discípula Oneyda Alvarenga.

O texto de 60 páginas (!), que levou sete dias para ser finalizada, em setembro de 1940, fazia referência à “uma espécie de pansensualidade, muito mais elevada e casta do que se poderia imaginar”. Mais do que o amor sexual em si, Mário tinha “o amor do todo”, como definiu, tão poeticamente, o amigo Manu.

A temática homossexual, ora mais explícita ora velada, não é novidade nos textos de Mário, mas como lembra o jornalista Jason Tércio, “literatura não reflete necessariamente a vivência do autor”. Para Tércio, que assina a biografia Em busca da alma brasileira (editora Estação Brasil), o poeta estaria mais para “pansexual, andrógino, bissexual”.


No entanto, basta circular pelos escritos de Mário para o leitor mais atento encontrar pistas da “assombrosa”, “quase absurda” e “monstruosa” sensualidade do escritor.

Logo que se mudou para o Rio de Janeiro, em 1938, o paulistano morou num apartamento na esquina das ruas do Catete e Santo Amaro, cujas janelas arreganhadas pelo calor da cidade deixavam o recém-chegado ver, com suas lentes de aumento, a vida privada que se amontoava na vizinhança.

Em um desses momentos de vouyerismo, Mário descreveu na crônica Esquina o vizinho ao lado que, todas as noites, antes de pôr o pijama, se exibia na sala de dois espelhos. De mãos sempre vazias, “jamais o vi com um livro, uma revista, um jornal sequer”, lamentou o vizinho erudito.

Aquele era só um corpo.


“Era realmente um prodígio de perfeição física, nessa cor de bronze novo dos que vivem de praia e de sol. Ficava muito tempo se espelhando, passando a mão com delícia nos músculos másculos, inchando a peitaria, examinando o dorso.”

‘Esquina’ – 7 de dezembro de 1939


Mário por Tarsila do Amaral, em 1922 (imagem: Divulgação)

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Não é raro encontrar aventuras sexuais em textos publicados por Mário que, desde muito cedo, vagou sem roteiro por endereços de São Paulo, como o Jardim da Luz, Anhangabaú e nas moitas do Parque Dom Pedro. Sem falar nas farras nas casas de luzes vermelhas na escura Líbero Badaró, onde o poeta gozava “umas dessas fêmeas gordas, mal vestidas e polacas”.

O belo Frederico Paciência, sobre o amor platônico entre dois meninos, é outro exemplo de como o tema permeou a obra do escritor. Considerado o único conto homoerótico de Mário, o texto levou 18 anos para sair do armário.

“Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor”, confessa o personagem Juca sobre o amigo de 14 anos de idade, dono de uma “solaridade escandalosa” e admirável “perfeição física”.

Eis Mário, tão à frente de seu tempo, tratando de um tema que até hoje ainda é tabu. Paciência.

SAIBA MAIS

Mário de Andrade: duas vidas
MASP (avenida Paulista, 1578 – Bela Vista)

Tel.: (11) 3149-5959

De 22 de março a 9 de junho (de quarta a domingo, das 10h às 18h, com entrada até as 17h)

Ingressos: R$ 70 (entrada); R$ 35 (meia-entrada) / Grátis, às terças, das 10h às 20h (entrada até as 19h)

Agendamento on-line obrigatório pelo link: masp.org.br/ingressos

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