Em tempos de Alemanha nazista, um judeu abrir a porta para alguém da força paramilitar SS (Schutzstaffel, em alemão) significava problemas. Mas o jovem oficial que chegou ao consultório de Hugo Levy tinha outras intenções.
Zumkle queria agradecer por ter sido amamentado pela mãe do cirurgião-dentista e vinha também para avisar que o país já não era seguro para Levy e sua esposa Margarethe, “judeus não praticantes e, extremamente, liberais”.
Essas e outras histórias, dignas da lista de Schindler, costuram o livro ‘Justa. Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil’, cuja pesquisa é uma das referências bibliográficas para a minissérie ‘Passaporte para Liberdade’, minissérie da Globo.
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A paranaense Aracy era secretária no consulado brasileiro em Hamburgo, onde conheceu o cônsul adjunto João Guimarães Rosa. Foi ali que facilitou a fuga de judeus perseguidos pela política cada vez mais restritiva na Alemanha de Hitler e no Brasil de Getúlio Vargas.
Entre as manobras, Aracy chegou a alterar documentos dos Levy, distribuiu alimentos em tempos de racionamento para judeus, ajudou-os a transferir dinheiro para o Brasil e transportou “vários deles em seu automóvel de placa diplomática”.
“Não só procurei conceder-lhes os vistos, como escondi alguns na minha própria casa e até no porta-malas do carro para atravessar a fronteira”, afirma Aracy, em uma de suas citações no livro ‘Justa’.
‘Justa’
Aracy de Carvalho Moebius escolheu a desobediência para a sua vida. Separou-se do primeiro marido em plenos anos 1930 e se arriscou com o filho pequeno na Alemanha, em uma época em que o normal era a emigração para as Américas.
Por salvar judeus da “deportação e do extermínio”, Aracy recebeu do Museu do Holocausto de Jerusalém (Yad Vashem) o título de “Justa entre as Nações”, em 1983.
O título é marcado com uma árvore na Avenida dos Justos, em Jerusalém, e “permite a comemoração pública de uma integração coletiva bem-sucedida”, nas palavras da autora de ‘Justa’, Mônica Raisa Schpun.
O memorial israelense concedeu mais de 20 mil títulos como o de Aracy, dos quais 30 foram para diplomatas. “Destes trinta, dois são brasileiros” (o outro era Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador na França, de 1922 a 1934).
Aracy seria a única mulher. Única e justa.
A minissérie ‘Passaporte Para Liberdade’, anunciada inicialmente como ‘O Anjo de Hamburgo’, foi gravada em Buenos Aires e no Rio de Janeiro.
Com direção artística de Jayme Monjardim e roteiro de Mario Teixeira, ‘O Anjo de Hamburgo’ terá dez capítulos e elenco de diferentes nacionalidades como o brasileiro Tarcísio Filho, Peter Ketnath (Alemanha), Sivan Mast (Israel) e Izabela Gwidzak (Polônia) como Margarethe Levy.
Sophie Charlotte será Aracy de Carvalho e o ator Rodrigo Lombardi, o escritor João Guimarães Rosa.
Nas quase três décadas de romance com o autor de “Grande sertão: veredas”, seu segundo marido, Aracy seria mais do que uma dedicatória na abertura da obra mais famosa do escritor.
“Aracy é pouco conhecida no Brasil e, em geral, as pessoas se lembram dela como a esposa do escritor Guimarães Rosa. Uma mulher inteligente, empática, batalhadora e que não cruzou os braços diante do que via ao seu redor”, define Jayme Monjardim, em nota enviada para o Viagem em Pauta.
Para o autor Mario Teixeira, a série é “uma história muito especial de uma mulher (…) que viveu sua vida tentando salvar a de outras pessoas”.
De acordo com a assessoria de comunicação da TV Globo, ‘ O Anjo de Hamburgo’ é livremente inspirada no livro ‘Justa’ e será a primeira produção da emissora totalmente em inglês, em parceria com a Sony Pictures.
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De lá para cá
Diferente de tantas outras obras dedicadas ao assunto, ‘Justa’ não se propõe a descrever métodos de tortura e genocídio em campos de concentração. São histórias sobre deslocamentos em busca de liberdade, a partir de anotações de uma brasileira de Rio Negro (Aracy) e da memória, às vezes falha, de uma alemã (Margarethe).
A primeira deixou o Brasil para trabalhar no consulado brasileiro em Hamburgo; e a segunda, de vida privilegiada na Europa, largou tudo para reescrever sua história, longe da perseguição aos judeus.
Uma enfrentava a guerra e a outra encarava um novo mundo.
Doutora em História e pesquisadora da EHESS (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais), em Paris, Mônica Raisa Schpun contextualiza as duas principais histórias na Hamburgo e na São Paulo do final dos anos 30.
Enquanto a libertária e internacional cidade alemã aderia à onda de perseguição a judeus, São Paulo alimentava sua fama de motor do Brasil.
Porém, assim como na entrevista, à época do lançamento do livro, ‘Justa’ não é uma biografia, já que havia pouca documentação relacionada a Aracy.
“O que tem ali já foi tirar água de pedra”, confessou ao Sabático, então caderno literário do jornal O Estado de S. Paulo.
Se você procura uma pesquisa profunda, daquelas com dados precisos que vão de relatos orais a documentos oficiais daqui e da Alemanha do Terceiro Reich, a obra justifica suas mais de 500 páginas sobre a imigração judaica no Brasil.
Mas se você espera uma história fácil sobre mulheres fortes, cujos dramas pessoais têm fôlego para roteiro de série de TV, o livro pode não ser para você.
Por conta da falta de dados biográficos e de uma certa lembrança apagada da memória de Margarethe Levy, o livro toma outros rumos que acabam afastando o leitor das histórias das protagonistas.
‘Justa’ se debruça também no itinerário migratório de outras 16 pessoas.
Vale lembrar que a Civilização Brasileira é o braço acadêmico do Grupo Editorial Record, daí a densidade e relevância da pesquisa nessa obra de 2011.
SAIBA MAIS
“Justa. Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil”
por: Mônica Raisa Schpun
(editora Civilização Brasileira)
www.record.com.br
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