Me aproximei pelo canto da mesa como mais um mortal daquela fila de tarde de domingo que ia dar nas águas de Araraquara.
Agachei ao seu lado, entreguei o livro pra dedicatória e, como numa literatura crônica, ele atestou, seguro:
– Eu te conheço.
Mas não era nos livros onde viviam os escritores? Não era de lá que vinham as histórias que eles contavam?
Eu não podia entender como aquele senhor, nascido e deitado nos trilhos que levavam as lembranças embora, podia se lembrar de mim, 21 anos depois do nosso primeiro encontro num evento escolar em que o escritor era o convidado.
Como ele mesmo já tinha escrito uma vez, não sei bem onde, o passado, que “é puro presente”, sempre vem nos buscar “onde quer que a gente esteja”.
Enquanto ele escrevia sete ou oito linhas curtas na página cinco do livro, conversamos sobre Carol e Daniel, sobre amizades provocadas e também sobre as águas de Araraquara.
Pera aí, que esse assunto me interessa, moço.
Recentemente, comecei explicando, fui pedir uma foto-celular com Zé Celso que, na ocasião do acaso numa sala de teatro, também disse que me conhecia.
– As pessoas de lá devem ter boa memória, né?, arrisquei, expondo a ignorância de quem nunca esteve n’Araraquara.
– É a água, explicou o conterrâneo Ignácio de Loyola Brandão, o escritor que assinava o livro pro leitor que dele leu (quase) tudo, mas nunca bebeu um copo sequer da água do Daae, o departamento líquido da cidade.
Ignácio, que ainda finalizava a dedicatória com autógrafo e data, começou então a lista dos araraquarenses ilustres que beberam da mesma água.
E a fila crescendo na livraria…
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Daquela fonte primária no buraco das araras ou na morada do sol, alimentaram-se Ruth Cardoso, Lívio Abramo e Liniker (bicha, tô passada).
Esses são apenas os que ele me contou, fora os que pesquisei na Wikipedia, naquelas listas que engrossam jornalismo: uma boa parcela de atletas, um cineasta e até uma atriz do tempo das pornochanchadas também nasceram naquela mesma Araraquara de Loyola Brandão.
Araraquara é musculosa, cinematográfica, santa (?) e literária.
Era lá inclusive que Mário de Andrade estava sempre “chegandinho” pra distrair as dores, curar doenças e, zás, escrever clássico.
Na cidade paulista que o poeta queria tão bem ficava a chácara Sapucaia do tio Pio, que na verdade era casado com a prima do modernista, a Zulmira.
Em Araraquara, Mário inexistia, descansava das próprias viagens e comia mangas.
Numa daquelas escapadas pro interior, inclusive, acabou concluindo ali sua obra mais famosa, em meio a um mundo de cigarras, murtas e magnólias. Ai que preguiça.
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Araraquara até parece literatura, mas é cinema mesmo, que aliás Loyola e Zé Celso tinham nele sua “religião absoluta” e não passavam um dia sequer sem ver um filme (sobretudo os que a Igreja condenava), pra então crescerem no conhecimento e frutificarem em boas obras, amém.
Até Herbert Richers bebeu daquelas águas bentas em nitrato de celulose que iam dar na Boca do Lixo.
Caros espectadores, Araraquara também é uma versão brasileira Herbert Richers.
Mas afinal o que eles querem de nós?
Bom, tudo isso pra dizer que no último dia 25 de setembro, Ignácio de Loyola Brandão lançou seu romance “Deus, o que quer de nós?”, da Global Editora.
Segundo me disse a orelha do livro, no pé do ouvido, é sobre o tempo, fronteiras e sentidos da vida num país em ruínas que perdeu a própria história, contada agora de forma “ágil, desbocada, feroz e anárquica”.
O autor, que nas últimas décadas atravessou o Brasil em todas as direções dando palestras, agora tenta explicar o rumo do próprio país que, afundado nas alegorias das falácias, segue pro Depois.
Mais, eu não quis saber. O resto é Ignácio sendo de Loyola Brandão e, em se tratando dele, nem me esforcei pra me inteirar do enredo.
Tratarei de levar ele (o livro) junto comigo na mochila da próxima viagem, como quem vai saltimbanco pra Ocara, em companhia de Borges, Woodstock e Ignácio, mais que perfeito pro futuro do presente.
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SAIBA MAIS
“Deus, o que quer de mim”
de Ignácio de Loyola Brandão
Concebendo uma trama intrigante que nos aponta para um profundo mergulho sobre um passado que insiste em retornar, o livro sinaliza que para sobreviver com dignidade é necessário (re)aprender a resistir aos desatinos da humanidade.
a partir de R$ 44,30
www.grupoeditorialglobal.com.br
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