“Sete quedas por nós passaram,
E não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
E todas sete foram mortas,
E todas sete somem no ar,
Sete fantasmas, sete crimes
Dos vivos golpeando a vida
Que nunca mais renascerá”
‘Adeus a Sete Quedas’ – Carlos Drummond de Andrade
Aos quatro anos de idade, levado pela minha mãe numa mesma viagem por Foz do Iguaçu e pelo Parque Vila Velha, eu era um dos milhares de visitantes que lotariam Sete Quedas, meses antes do seu fim.
Em outubro daquele mesmo 1982, a “maior cachoeira submersa do mundo” sumia no ralo de Itaipu, tragando uma quantidade de água treze vezes maior do que as Cataratas de Vitória e o dobro do volume das Cataratas do Niagara.
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Localizado em Guaíra, município do Paraná a 240 km de Foz do Iguaçu, o Salto de Sete Quedas, que já foi um dos atrativos turísticos mais famosos desse país desmemoriado, desapareceria para dar lugar à criação do lago artificial da futura hidrelétrica entre o Brasil e o Paraguai.
Mas antes dos saltos sumirem em apenas 14 dias, um slogan oficial dava início à tragédia: “Visite antes que acabe”. E minha mãe e eu seríamos um dos milhares de brasileiros que atenderiam ao pedido do governo paranaense na época.
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Por mais de 30 anos, o barulho ensurdecedor das águas barrentas do rio Paraná ecoaram na minha cabeça.
Eram 19 quedas principais, uma delas com 40 metros de altura, aproximadamente, cujo som das águas podia ser ouvido em Terra Roxa, município a 26 km dali.
As imagens registradas na memória daquela criança ainda se confundem com a potência do que um dia foi a maior queda em volume d’água do mundo.
A visita se resumia a um circuito de 2,5 km de extensão sobre pontes de madeira, instáveis e precárias, que balançavam sobre quedas d’água potentes e a forte correnteza do Rio Paraná.
Com o fim do Parque Nacional das Sete Quedas decretado pelo então presidente João Figueiredo, no ano anterior, e com a proximidade do fechamento das comportas de Itaipu, o atrativo já não recebia a manutenção necessária.
E aquela criança sentiria o descaso na pele (e na alma).
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Eu nunca mais pude esquecer o momento em que fui colocado no ombro de um desconhecido para atravessar uma das precárias pontes de madeira que balançavam sobre águas violentas que escorriam por onde fosse possível escorrer.
Escorriam pelos veios de rochas, pelos cânions estreitos e pelo chão das pontes. E pela mente também.
De olhos bem abertos, arregalados pelo desespero, eu podia ver pedaços de ponte que já tinham despencado rio abaixo, enquanto aquele desconhecido salvador pulava buracos comigo a tiracolo para seguir adiante.
Apesar do clássico arco-íris que se formava entre as quedas, um fenômeno capaz de entreter qualquer criança pequena, eu só tinha olhos para o tapete espumoso que descia violentamente pelos paredões líquidos daquele acidente geográfico no Rio Paraná.
A experiência era o prenúncio não só do “maior crime ambiental do Brasil”, mas também de uma tragédia.
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No início de 1982, a ponte pênsil Presidente Roosevelt não suportaria o excesso de visitantes e no dia 17 de janeiro seus cabos de aço arrebentariam, matando 32 pessoas que caíram no rio.
Só para ter uma ideia da potência daquelas águas, um dos corpos seria encontrado em Foz do Iguaçu, dias depois do acidente. A ponte com vista para o Salto 19, o mais famoso deles, tinha quase 40 metros de extensão e ficava a 25 metros de altura.
O resgate com barcos e cordas demoraria horas e mais de 1.500 visitantes ficaram isolados em diferentes ilhas entre as quedas.
Sentado no chão da casa de uma tia, em janeiro daquele mesmo ano, eu voltaria a reviver a experiência enquanto a TV mostrava as cenas recentes de visitantes sendo levados pelo rio.
Minha relação com as águas que caem nunca mais foi a mesma. Piscina extensa ou mar que não dá pé nunca foram problemas para mim, mas água que cai de cima e faz espuma branca…
Por anos, minha Sete Quedas interior me desestabilizava.
Meu hábito de tomar banho apenas com a mangueira lateral do chuveiro só seria deixado no início da fase adulta. Eu já estava bem grandinho e ainda não conseguia ter água caindo diretamente sobre a cabeça.
Já o receio paralisante de entrar numa cachoeira só foi superado mais de três décadas depois, quando quedas d’água de diferentes alturas seriam cenários constantes para mim, forçado pela vida de jornalista da editoria das viagens interioras.
Os traumas foram superados e as cachoeiras já não são mais uma ameaça. Mas, de tempos em tempos, o barulho ensurdecedor das águas barrentas do Rio Paraná ecoa aqui dentro.
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