“Eu quero bem Minas porque quero, porque coincidiu comigo”.
Durante toda sua carreira, o antiviajante Mário de Andrade preferiu o consolo dos livros, na casa da mãe Maria Luísa, na Barra Funda, em São Paulo. Mas Minas Gerais era um dos seus lugares preferidos, como confessou na frase acima, em uma carta para a poetisa Henriqueta Lisboa.
Por isso, esse escritor paulistano foi um dos integrantes de um grupo extravagante de artistas e intelectuais numa das viagens mais conhecidas dos tempos modernistas.
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Na Semana Santa de 1924, uma caravana ilustre viajou rumo a Minas para apresentar parte do Brasil para o recém-chegado Blaise Cendrars, poeta franco-suíço que visitava o país pela primeira vez.
Além de Mário, a trupe era formada por Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, René Thiollier, Dona Olívia Guedes Penteado, conhecida como a Dama do Café, e seu genro Goffredo Teles.
Para a pesquisadora Aracy A. Amaral, a visita de Cendrars foi um alerta sobre o nosso país “como matéria-prima, poética, musical”.
“Sua vinda é um marco, no sentido em que dá início à redescoberta do Brasil pelos modernistas”, descreve a historiadora, em seu livro Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas (editora 34).
Naquele fim de Belle Époque que fervia em São Paulo, os modernistas deixavam o confinamento das tertúlias e dos salões privados para descobrirem não só Minas Gerais, mas esse país desconhecedor da própria arte.
A viagem de redescoberta do Brasil
De costas para si, o país sabia mais sobre Napoleão do que sobre Lampião (muito menos sobre Aleijadinho). Parecia “turismo literário”, mas eram os modernistas na Viagem de Descoberta do Brasil, nas palavras do escritor Oswald de Andrade.
O roteiro começou em São João del Rei e seguiu para outras mineirices, como São José d’El Rei (mudado, depois, para um “odontológico Tiradentes”, como ironizou Mário sobre a mudança de nome da cidade), Ouro Preto, Mariana e Congonhas do Campo.
Congonhas foi o encontro com Aleijadinho, um dos maiores artistas do período colonial brasileiro. Já Ouro Preto, a exaltação máxima de toda a excursão, foi a cidade onde o grupo visitou diversos monumentos históricos.
De acordo com os pesquisadores Eneida Maria de Souza e Paulo Schmidt, no livro Mário de Andrade: carta aos mineiros (editora UFMG), a turnê paulista em Minas é “o marco inaugural do laço entre a poética modernista e a tradição da arte barroca”.
Porém, precisou que um europeu atravessasse o Atlântico para que o Brasil descobrisse aquilo que já tinha, mas não sabia. Minas era a tradição que todos precisavam ver para ter as próprias novidades.
A convite de Oswald e com patrocínio de Paulo Prado, Blaise Cendrars, o poeta que levava ao extremo “o desdém pelas conveniências poéticas”, na descrição do jornal A Noite, desembarcou aqui pela primeira vez, em fevereiro de 1924, depois de quase um mês viajando no navio Formose, cuja chegada no Rio de Janeiro deu o que falar.
Vestido com um paletó de pijama, Cendrars ficou retido na alfândega porque acharam que o recém-chegado era mendigo ou louco, quando disse às autoridades que vinha ao encontro com o então presidente Washington Luís.
Antes de seguir para Santos e logo para a capital paulista, o francês ainda teve que se explicar pela falta do braço direito, mutilado durante a 1ª Guerra Mundial.
“O Brasil não precisa de mutilados, precisa de braços”, comentou Mário de Andrade, num de seus raros momentos de deselegância. Mas, uma vez liberado, tudo para aquele estrangeiro que já tinha até transiberiado eram maravilhas, inclusive o que não deveria ser.
Assim como lembrou a pintora Tarsila do Amaral, em um depoimento dos anos 1970, uma das situações hilárias da viagem foi a cena na janela de uma cadeia em Tiradentes, em que a trupe parou para conversar com dois presos que tinham matado e comido o coração de um homem.
– “Maravilhoso!” – suspirou Cendrars, ao final da explicação criminosa.
Pretérito com futuro
Em Belo Horizonte, os viajantes se hospedaram no Grande Hotel, um edifício imponente de três andares, no centro da cidade, onde conheceram jovens como Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade.
– “Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei”, confessou Mário para Drummond, em uma carta escrita no final do mesmo ano da viagem mineira.
Ele queria apenas contar as histórias todas de Minas. E contou.
Daquela mesma viagem, não só sairia a longa troca de cartas entre os dois (Drummond, na época, com 21 anos, e Mário, aos 31), mas também inspiração para o poema Noturno de Belo Horizonte, publicado no livro Clã do Jabuti, em 1927.
A mesma viagem que tirou o Brasil da “pasmaceira artística” inspirou os futuros trabalhos de Tarsila e Oswald, que voltaria cheio de ideias para seu Pau-Brasil, livro de estreia na poesia.
Já Tarsila do Amaral, autora da pintura acima, regressou com seu caderno de anotações cheio de desenhos esbeltos que registraram o que o país tinha esquecido. Diante das tradições de uma nação parada no século XVIII e da simplicidade interiorana de Minas, a caipirinha vestida por Paul Poiret fez também uma reviagem à infância nas fazendas paulistas, dando novos tons para sua arte.
O abandono histórico e artístico visto na viagem inspiraria também dona Olívia nos esboços do estatuto da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, base para as criações da Inspetoria dos Monumentos Nacionais, do Departamento de Cultura de São Paulo e do SPHAN, futuro IPHAN, do qual Mário também participou da criação, anos mais tarde.
Tombado, o país seguia de pé e nunca mais esqueceria o que acabava de ficar sabendo. Pretérito com futuro. E Nosso Senhor, do lado de lá do mundo, inda desejaria um “boa viagem”.
– “Eu, ninguém precisou de me vir dizer que o Brasil era interessante”, escreveu Mário de Andrade para o colega Sergio Millet, no final do mesmo 1924 em que os modernistas descobriram o próprio país.
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