A princípio eram dois. Tão opostos que nem dava para acreditar que aquilo fosse dar certo, mas deu. Tarsila e Oswald viraram um só.
Na alegria e nas artes, na tristeza e na estrada, Tarsivaldo, como Mário de Andrade shipava o casal, durou pouco. Mas dura até hoje.
Viagens não eram novidades para a artista paulista.
Nascida em Capivari, na Fazenda São Bernardo, Tarsila do Amaral cresceu em Monte Serrat, em Itupeva, e visitava as primas numa casa no então distrito de Mombuca.
Para lembrar os 50 anos de morte de Tarsila do Amaral, no último dia 17 de janeiro, o Viagem em Pauta percorre as viagens (e olha que não foram poucas) da pintora que levou o Brasil para o mundo, sobretudo nas viagens que fez com o então marido Oswald de Andrade.
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Paris, que desilusão!
A França não era novidade para a família, mas foi da Europa que Tarsila trouxe suas referências artísticas.
Em 1902, a menina Capivari dos “olhos gulosos” cruzou o Atlântico pela primeira vez, aos 16 anos.
Desde cedo, feita para se demorar nas viagens, só voltou dois anos depois, quando Dona Lydia foi buscar as filhas Tarsila e Cecília, na escola em Barcelona, para conhecerem Paris.
– Que desilusão!, escreveu a pintora, anos mais tarde.
Seu estreitamento com a cidade em que passaria tantas outras temporadas era só uma questão de tempo.
Tarsila pés de inca
Não demorou muito para o primeiro casamento nem para Tarsila cair na estrada outra vez.
Aos 18, no mesmo ano em que voltou de Paris, a artista se casou com o primo André Teixeira Pinto e seguiu em lua de mel na Argentina e no Chile. Teve viagem marítima até Buenos Aires, trem até Santiago e trilhas sobre mulas que desafiavam a gravidade dos precipícios andinos.
Dulce, sua única filha, nasceu daquela união e, desde cedo, seria uma das suas companheiras de viagens.
Já o marido não teve a mesma sorte, e logo estaria fora de cena.
Segundo a biógrafa Aracy A. Amaral, “desencantos” e “desnível cultural”, além das constantes mudanças de endereço, fizeram o matrimônio chegar ao fim mais cedo do que se esperava.
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Luz para Tarsila
A partir de 1913, dividida entre a música e os cavaletes, Tarsila se firma na capital paulista, entre pinturas no Parque da Luz, Olavos Bilacs e Willians Zadigs.
Aliás, como lembra Aracy, o ateliê de Tarsila na rua Vitória, no Centro, teria sido um dos primeiros de São Paulo, montado em 1917 sob orientações de seu então professor de desenho, Pedro Alexandrino.
Naquela década, Tarsila seguiria ainda com seus estudos de piano, trabalharia com o escultor sueco William Zadig, na rua Líbero Badaró, e estudaria modelagem em barro com Mantovani.
Paris, agora, sim
A década de 1920 começou com Tarsila “Peregrina” do Amaral em Paris, já com a filha Dulce e “a dois passos do Louvre”, em meio às novidades artísticas que agarravam seu calcanhar.
Por conta dessa nova temporada parisiense, a pintora não esteve na mais famosa reunião modernista, a Semana de 22, no Teatro Municipal de São Paulo, quatro meses antes de seu retorno ao Brasil, em junho.
Mas no final do mesmo ano, adivinha por onde andava Tarsila, dessa vez com Oswald de Andrade no radar?
Em janeiro de 1923, às escondidas, o casal visitou Portugal e Espanha.
O ano, marcado por trabalhos de Tarsila no ateliê de André Lhote e amizades com Blaise Cendrars e Jean Cocteau, seria importante tanto para sua formação artística como para a de Oswald, para quem a Europa já não era nenhuma novidade.
Em meio a almoços diplomáticos, concertos, corridas de cavalo e natação, Tarsila ainda tinha tempo de receber brasileiros em seu ateliê na rua Hégésippe Moureau, no 18.º arrondissement de Paris. Por ali, passaram nomes como Di Cavalcante, Villa-Lobos, Paulo Prado, Sérgio Milliet e a mecenas Olívia Guedes Penteado.
– A verdadeira Paris foi a Paris de 23, confessou Tarsila, mais tarde, apagando da memória a má impressão da primeira vez na capital francesa.
Entre as tradições da abastada família fazendeira e as novidades industriais que mudavam São Paulo, Tarsila preferiu o mundo, e sua arte, a simplicidade autêntica de um Brasil interior que ainda se desconhecia.
Em Paris, o casal se convencia de que o Brasil, sim, existia.
Com Cendrars para cima e para baixo com Tarsivaldo, a França começava a se interessar pelo Brasil, em especial, pela “graciosidade caipira” de Tarsila. Vestida de Paris, a caipirinha paulista se sentia cada vez mais brasileira.
A turnê europeia ainda incluiria passagens pela Itália. Roma, Milão, Pisa, Siena, Veneza, Capri e Nápoles.
E os elefantes, chegam logo?
A caravana paulista que partiu para Minas Gerais, em 1924, é uma das viagens mais importantes para os modernistas e as artes brasileiras.
Só pela lista de viajantes já dava para saber o que viria pela frente.
Entre eles, Oswald de Andrade, com seu filho Nonê, o amigo Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e o suíço Blaise Cendrars, que visitava o Brasil pela primeira vez.
Em plena Semana Santa, a trupe começou a viagem por São João del Rei e seguiu por cidades históricas como Tiradentes (na época, São José d’El Rei), Ouro Preto, Mariana e Congonhas.
Após essa viagem histórica, os modernistas seriam só ideias.
O grupo propôs, já em São Paulo, a criação de um órgão que cuidasse melhor do (abandonado) patrimônio arquitetônico e artístico do Brasil da época, e Osvaldo voltou com inspirações para seu ‘Pau-Brasil’, livro de estreia lançado no ano seguinte.
Já a arte cubista de Tarsila, que tinha feito uma reviagem à infância nas fazendas paulistas, ganhou novos tons e deu vida a telas como ‘Morro da Favela’ e ‘Carnaval em Madureira’, onde uma Torre Eiffel se ergue no bairro de Madureira, no Rio de Janeiro.
Pau-brasil nela!
– Mas e os elefantes, chegam logo?, perguntou Mário, em São João del Rei, quando aquela gente cheia de malas (e ideias) foi confundida com uma companhia circense.
– Chegam logo, sim, respondeu Tarsila.
– Não se pode calcular o sucesso da pseudo companhia de circo na cidadezinha tranquila, descreveu Mário num jornal mineiro, mais de uma década depois.
Parecia “turismo literário”, mas eram os modernistas na “Viagem de descoberta do Brasil”, como Oswald definiu certa vez.
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De longe, o Oriente é lindo
Como lembra sua biógrafa, Tarsila uma vez ouviu de Dona Olívia a seguinte conclusão:
– Quando se começa a achar bonitas as vitrines do Mappin, está na hora de voltar para Paris.
Ou conhecer o Oriente, Dona Olívia.
Antes de abrir sua primeira individual em Paris, em junho de 1926, Tarsila viajou para Grécia, Turquia, Chipre, Israel e Egito, acompanhada da filha Dulce, Oswald e Nonê.
Inspirado por esse mesmo roteiro, o médico e escritor Cláudio de Souza, que também fazia parte do grupo de viajantes, escreveu “De Paris ao Oriente”, um diário de bordo posto num livro de dois volumes com impressões pessoais, detalhamento histórico e muito humor (até hoje, aliás, uma raridade nos livros de relatos de viagens).
– Para ver o Oriente é preciso fechar os olhos. Basta imaginação e uma pílula de ópio, recomendou Amaral, um dos personagens que viajou comprido por aquele pedaço de mundo no mundo imaginado de Cláudio.
Cláudio até tentou se entregar aos delírios do ópio para imaginar um Oriente exótico de lendas e tradições, mas diante da modernidade passadista que viu, só conseguiu sentir cheiro de gasolina e ouvir o fonfonear dos automóveis.
Gonçalo, o personagem oswaldiano inventado por Cláudio nessa mesma viagem, se irritou com a falta de Cairo no Cairo, que mais parecia Paris ou Londres.
Para ver o Egito que queriam ver, foram a um bazar, o mercado das quinquilharias árabes, do caos visual, do vozerio humano e das essências orientais trazidas da… Alemanha.
– Que orgia perturbadora, diria um dos personagens.
Tampouco se surpreenderam com as pirâmides que, de tão presentes nos anúncios publicitários e maços de cigarros, pareceram vulgares. Sem falar na taxação das gorjetas excessivas aos profissionais enciclopédicos que se agarravam nos casacos dos turistas.
Ah como era lindo o Oriente… de longe. Sonho de lenda, deliciosa miragem.
Dias depois, em um dia de inverno, estavam todos de volta a Paris, caminhando pela Champs-Élysées, cansados de tanto passado.
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Coco de Pagu
A década nem tinha chegado ao fim e, em 1929, Oswald se apaixonaria pela escritora Patrícia Rehder Galvão, bem no ano em que Tarsila fazia sua primeira exposição individual no Brasil, no Palace Hotel, no Rio de Janeiro, e no Edifício Glória, na Barão de Itapetininga, rua do Centro paulistano.
Com o novo amor, Oswald foi para a Bahia e nunca mais teve a esposa em seus braços.
“Eh Pagu eh! / Dói porque é bom de fazer doer”, chegou a escrever o modernista Raul Bopp, em seu ‘Coco de Pagu’.
Tarsila não ficaria para trás.
Em 1931, conheceu o intelectual e médico psiquiatra chegado dos artistas, Osório César, com quem viajou para a União Soviética, no mesmo ano, passando por destinos como São Petersburgo (que na época atendia pelo nome Leningrado), Crimeia e Odessa, na Ucrânia.
Inspirado nesse roteiro de cerca de dois meses, Osório escreveu ‘Onde o Proletariado Dirige’, com ilustrações da própria companheira.
Já Tarsila, que chegou a vender obras de sua coleção para bancar a viagem, venderia a tela ‘O Pescador’ para um museu de Moscou, cuja quantia recebida teve que ser gasta por ali mesmo para não levantar suspeitas.
Mas levantou.
No ano seguinte, de volta ao Brasil, Tarsila ficaria presa por um mês no Presídio do Paraíso, em São Paulo, por ter andado por terras estranhas e participado de reuniões de esquerda.
“Comunista!”, gritariam alguns, hoje em dia. Loucura que nem o Juqueri seria capaz de imaginar.
Em 1933, com aquilo tudo ainda na cabeça e já instalada na Alameda Barão de Limeira, em São Paulo, Tarsila faria conferências sobre arte gráfica soviética e pintaria os quadros ‘Operários’ e ‘Segunda Classe’.
Porém, a relação vermelha duraria pouco.
O casal até chegou a fazer outra viagem, dessa vez, para o Uruguai, mas aquele mesmo ano ainda veria Tarsila com o escritor Luís Martins, mais de vinte anos mais moço que ela e com quem passaria a vida por cerca de duas décadas.
Quando Tarsila e Martins se mudaram para o Rio de Janeiro, em 1936, moraram no mesmo prédio da rua Santo Amaro, no Catete, que mais tarde teria Mário de Andrade como um dos condôminos. O casal, porém, já não estava mais lá.
De volta à capital paulista, dois anos depois da temporada carioca, a artista já não viajaria tanto como nos produtivos anos 20, sobretudo após a família perder a fortuna com a queda da bolsa de Nova York, em 1929.
Atualmente, dizem, Tarsila brilha perto do Sol, no excêntrico Mercúrio, onde fica a Cratera Amaral, em sua homenagem.
SAIBA MAIS
“Tarsila: sua obra e seu tempo”
(Aracy A. Amaral)
Biografia com extenso material, como fotografias e desenhos, que abrange a vida da pintora, do nascimento no interior paulista ao seu recolhimento, no final da vida.
Editora 34 / Edusp
“Corrrespondência: Mário de Andrade & Tarsila do Amaral”
(organização Aracy A. Amaral)
Livro com as transcrições das cartas trocadas entre os dois modernistas, entre 1922 e 1940, além de um caderno de fotos e desenhos.
Edusp / IEB
“Diário de bordo”
(Blaise Cendrars)
Livro bilíngue (francês/português) com textos diversos escritos pelo suíço, durante sua primeira viagem ao Brasil, em fevereiro de 1924.
Editora 34
BREVE, MAS ADORÁVEL HISTÓRIA DA ARTE E DA PERSONALIDADE DE TARSILA DO AMARAL!