A atriz Maria Alice Vergueiro atuou no Teatro Oficina, trabalhou com Augusto Boal e foi uma das fundadoras do grupo Ornitorrinco.
Mas o tapa na pantera da sua carreira foi um vídeo de pouco mais de três minutos sobre uma senhora que fumava “unzinho”, há 30 anos, sem pular um dia sequer.
Em 2024, o curta-metragem ‘Tapa na Pantera’, dirigido por Esmir Filho, Mariana Bastos e Rafael Gomes, completa 18 anos que foi ao ar, pela primeira vez, sem que nem os pais da criatura ficassem sabendo.
Tudo começou, em 2006, quando o então trio de estudantes do curso de Cinema convidou a atriz paulistana para atuar em um curta-metragem sobre uma síndica de um prédio que reclamava dos moradores.
Maria Alice aceitou. Mas do jeito dela.
“Quando ela abriu a porta do apartamento, já estava com o cachimbo na mão e vestida daquele jeito. Ela estava no personagem e a gente começou a fazer perguntas para aquela senhora. E foi ficando hilário”, lembra o cineasta Esmir Filho, em entrevista para o Viagem em Pauta.
A história da tal síndica encrenqueira não vingou, e para aquilo tudo se tornar um dos primeiros vídeos virais no Brasil foi só uma questão de dois ou três peguinhas.
“Às vezes, você tem um plano, mas a cena se transforma de uma maneira, os atores e a locação proporcionam algo diferente. Eu não tenho medo de pisar nesse lugar novo”, avisa Esmir.
Na época, em uma das inúmeras entrevistas que deu por conta do sucesso repentino, a atriz, morta em 2020, lembrou que o roteiro foi fruto de uma improvisação de uma hora de duração, em que ia falando o que vinha à cabeça.
(‘Tapa na Pantera’)
“Fuma aqui e toma um chá. Fuma aqui e toma um chá”.
Enquanto o vídeo era inscrito em festivais de curtas, naquele mesmo ano, uma versão vazou na internet e Esmir começou a receber links de um site que ele não tinha ideia do que se tratava.
Não era uma questão de lapso de memória causado pelo papelzinho nem do uso prolongado do cachimbo. Recém-criado, o YouTube dava os primeiros passos para se tornar a plataforma de vídeo mais popular do mundo.
“Comecei a entrar no perfil de cada um para pedir para retirar [o vídeo que tinham subido na plataforma]. Em poucos dias, todos os veículos estavam dando a notícia [sobre o sucesso da história]”, conta Esmir.
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“Não, menino, eu não tenho computador. Estou famosa sem saber. Eu não estou sabendo lidar com isso. Vocês estão percebendo? Estou ficando meio triste”, diz Maria Alice, soltando uma sonora gargalhada, no spin-off ‘Entrevista com a Pantera: o sucesso de Tapa na Pantera visto de dentro’.
Esmir conta também que a atriz debochava do sucesso do vídeo e que, após anos de estudos em teatro, era conhecida agora “como a velha maconheira”.
“Por conta desse vídeo, Maria Alice comprou até um computador. Ela era a diva desse mundo [viral] e conviveu muito bem com isso. Ela foi chamada para fazer muita coisa depois disso”, conta.
Outra novidade na vida da “diva do underground” foi no final daquele mesmo ano, quando ela ficava em uma cadeira recebendo os participantes da festa “Tapa na Pantera”, no clube A Lôca, na Bela Vista, em São Paulo.
“Eu fumo há 30 anos, todos os dias, num pulo nenhum, e não tô viciada”.
(‘Tapa na Pantera’)
O sucesso do Tapa na Pantera
Segundo arquivos do Jornal do Terra, em poucos dias, o vídeo já tinha sido visto “por mais de 235 mil internautas”, um sucesso inesperado que fez Maria Alice se sentir uma “musa cult”.
Na época, o curta foi visto também em festivais de cinema como o Kinoforum, em São Paulo, e o de Gramado, no Rio Grande do Sul, que chegou a exigir dos jovens diretores a assinatura de um termo que isentasse a organização do evento de qualquer responsabilidade.
Atualmente, só o vídeo original, hospedado no canal de um dos diretores, acumula 9,2 milhões de visualizações. Sem falar nos cortes não oficiais, cujos números em cada perfil variam entre 384 mil e 1,8 milhão.
As cifras são discretas, se comparadas às do primeiro vídeo da história do Youtube, ‘Me at the zoo’, publicado, há 19 anos, e com impressionantes 321 milhões de views, atualmente.
Porém, a espontaneidade da atriz ainda é muito mais empolgante do que a do jovem Jawed Karim, um dos criadores da plataforma de vídeos, surpreendendo-se com as longas trombas de dois elefantes, em um zoológico de San Diego, nos EUA.
Procurado via e-mail para comentar o sucesso do vídeo, o YouTube preferiu não se manifestar, pois, no momento, “não temos porta-vozes disponíveis para falar sobre o assunto”.
“Eu fumo no cachimbo porque o que faz mal é o papelzinho.”
(‘Tapa na Pantera’)
Para Esmir, o vídeo quebrava um tabu, em uma época em que “as coisas [na internet] eram mais leves” e se, hoje, soa atual é porque “as pessoas o atualizam e o revivem”.
“Foi tudo espontâneo e a gente só percebeu depois que era um vídeo político na sua forma de fazer rir”, analisa.
Apesar de ser tudo mato naquela distante internet, há quase duas décadas, a equipe optou por deixar bem claro, logo na abertura do vídeo, de que se tratava de uma obra de ficção (algo que, em pleno 2024, nem sempre é avisado ou levado em consideração).
Questionado sobre o motivo, Esmir contou para a reportagem que não se lembra, exatamente, o porquê da decisão de incluir essa cartela ao vídeo, mas provavelmente para evitar ser confundido como apologia às drogas e “até mesmo para proteger a própria Maria Alice”.
Outra curiosidade que Esmir destaca daqueles “inocentes” anos de internet é a ausência de haters ou de qualquer tipo de perseguição, inclusive de autoridades. “Existia uma criação acontecendo e a gente deixou isso acontecer”, lembra o cineasta.
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Com o sucesso do vídeo, Esmir também viu a própria carreira tomar seu “tapa na pantera”.
“Aos 24 anos, foi a minha grande escola e eu ainda estava entendendo as consequências. Não teve nenhuma estratégia de marketing, mas me convidavam para dar palestra sobre como fazer um viral”, conta o diretor, que só conheceu o Youtube quando seu vídeo começou a viralizar sem que ele soubesse.
Anos mais tarde, esse paulistano de 41 anos dirigiria também os longas Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) e Verlust (2020), e a série Boca a Boca (2020), na Netflix.
No momento, Esmir está nas fases de montagem e finalização de Homem com H, cinebiografia sobre Ney Matogrosso, rodada no Rio e em São Paulo, com previsão de lançamento nos cinemas, em 2025.
(‘Tapa na Pantera’)
“De vez em quando me dá um branco assim. Você fica, de repente, você fica, você vai, entende?”
O que significa “dar um tapa na pantera”
A explicação vem da própria Maria Alice Vergueiro, ou se você preferir, a fumeta criada por ela.
“Porque tá tudo quieto assim, a pantera tá quieta, de repente dá um tapa na pantera. Pá na pantera. E a pantera começa realmente a perceber coisas que o chamado mundo real não percebe”, explica a personagem.
A expressão teria origem na década de 1960 e era usada como uma espécie de senha para convidar alguém para fumar.
Embora aqueles futuros cineastas entendessem que se tratava de “um falso documentário”, Esmir acredita que o discurso e o formato da captação só seriam criados na hora da montagem do curta.
“É o tempo que diz as coisas. O vídeo está ali há muito tempo e ainda é citado e revisitado”, analisa o diretor que, apesar de achar que o Tapa na Pantera está esquecido, se diverte até hoje com as versões encontradas em outras redes, como o Tik Tok.
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