“Roteiro alivia a ansiedade”, diz Vitor Fadul ao viajar como autista

A vida de Vitor Fadul é rodeada de borboletas (e não só as que fazem cócegas na barriga, antes de um show).

No ano passado, esse cantor e compositor paulista lançou seu primeiro álbum de estúdio, ‘Panapaná’, palavra de origem tupi para coletivo de borboletas.

“Em uma única existência, se pode ser o ser que rasteja, o que se transforma e o que voa. É mágico”, explicou Fadul, que sempre carrega no pescoço um colar com uma borboletinha azul, a Vitória.

foto: Divulgação

Se sair por aí é uma experiência desafiante para viajantes dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA), para esse artista de Itanhaém, as viagens são inspirações para seu processo criativo.

Seja meditando num navio no Mar Egeu ou numa visita de quase cinco horas num museu suíço, viajar é sair do próprio casulo e ver o que tem aqui fora.


Borboletas pelo mundo

Recentemente, Vitor Fadul e o esposo Leandro Karnal fizeram uma viagem de 42 dias pela Europa, passando por Turquia e Grécia, onde o artista viu neve pela primeira vez, em Metsovo. O casal esteve também na Alemanha, Suíça e Portugal (veja roteiro completo mais abaixo).

“Minhas viagens são mais do que apenas trabalho, são oportunidades incríveis para expandir meu conhecimento e compreensão sobre diversas culturas e contextos”, conta Fadul, em depoimento exclusivo para o Viagem em Pauta.

Mas como se preparar para uma viagem com uma condição neurológica que compromete, principalmente, a interação social e não costuma lidar bem com mudanças de rotina?

Meditando no Mar Egeu (foto: Divulgação)

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“Quando viajo, tento entender como o autismo é tratado nos lugares que vou visitar. Mas, muitas vezes, é difícil encontrar essa informação. Em alguns lugares, quando digo que sou autista, preciso explicar muitos detalhes”, lamenta Fadul.

Pessoas com TEA podem (e gostam de) viajar, porém é importante saber escolher o destino, planejar com antecedência e lidar com situações não esperadas, que podem causar ainda mais ansiedade.

“Não é mole, não. É um desafio e pode ser bem estressante para todos.”

Erasmo Barbante Casella, neurologista infantil

Esse médico do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, diz que o preparo de uma viagem é importante, desde que dentro daquilo que se possa ser cumprido. “Qualquer alteração na rotina pode resultar num descontrole, causando mais ansiedade e episódios de descompensação”, diz.

Karnal e Fadul, por exemplo, sempre montam um roteiro turístico com atividades que contemplem os interesses dos dois.

“Vitor gosta de ler muito sobre o lugar antes [de viajar] e encontrou meios de lidar com suas especificidades cerebrais de forma criativa e metódica. Ele tem um olhar intenso de curiosidade diante do mundo e eu admiro muito esta característica”, descreve o marido do cantor.

Karnal acredita que a vantagem é que ambos gostam de museus, teatros, bibliotecas e concertos. “Isso facilita o planejamento”, conta para o Viagem em Pauta.

foto: Divulgação

No entanto, Cláudia Romano Pacífico, doutora em Psicologia Experimental, lembra que o autista deve participar da elaboração do roteiro da viagem, de forma que se sinta motivado. Como ela mesma explica para a reportagem, uma das características do TEA é o interesse restrito, por isso, “poder ampliar [esse repertório] numa viagem é maravilhoso, é o que mais mexe com ele”.

Em outras palavras, é viagem com inclusão.

“Tudo que você puder ensinar sobre aquele lugar para ele se sentir conectado, vai ampliar repertório e gerar interesse.”


Cláudia Romano Pacífico – doutora em Psicologia Experimental

Umas das dificuldades para esse perfil de viajante é a mudança de agenda, de modo que “previsibilidade da nova rotina” é importante para que ele entenda para onde está indo e o que irá encontrar.

“Antecipar o ambiente [da viagem], mostrando mapas, pessoas e costumes é eficiente e dá segurança”, sugere Cláudia, que também é professora-coordenadora do curso de especialização de Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo da PUC-SP.

O neurologista Casella diz também que é preciso tentar minimizar as alterações sensoriais que possam surgir no destino, como lugares cheios e barulhentos. “Isso dá um certo descontrole nas pessoas com TEA”, avisa.

* No box mais abaixo, você encontra outras dicas para viajar com autistas.


Antes de viajar, Vitor Fadul faz um itinerário prévio, mas aberto para imprevistos.

“Estar ciente de um roteiro pré-definido já alivia parte da ansiedade. Um dos motivos que podem desencadear uma crise é a aleatoriedade das coisas, então busco me precaver e pesquisar bastante para ter o mínimo possível de surpresas”, explica.

Além de andar sempre com sua carteira de identificação de autismo, o cantor viaja com uma mochila extra com itens como chicletes para se acalmar, fones e tampões de ouvido, e um pequeno ventilador portátil para sua “sensibilidade ao calor” (e “um leque para o caso do ventilador falhar”).

Cláudia sugere, por exemplo, um “kit sensorial” com objetos que, além de acalmá-lo e ajudá-lo a se regular, “façam parte da sua história”.

Mas o que fazer quando a viagem decide se “desplanejar” e pregar uma peça no viajante?

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Entre os desafios já enfrentados, Fadul citou o dia em que seus óculos especiais foram furtados, enquanto dormia no avião.

“Isso me deixou desesperado e frustrado, causando uma intensa crise. Não só a perda do objeto me machucou, mas também a sensação de vulnerabilidade e invasão de privacidade”, conta o artista que, após o ocorrido, decidiu procurar ajuda profissional para entender suas emoções e lidar com crises.

Naquela época, ele ainda não entendia a magnitude das suas reações e, hoje, acredita que um diagnóstico precoce de autismo é importante para entender certos comportamentos.

“Em vez de passar a vida inteira pensando que eu era um alienígena, poderia ter compreendido desde cedo que a minha maneira de ser é simplesmente diferente”, analisa Fadul.


Por cidades mais amigáveis com o autista

“O autismo não é uma barreira em si, [o problema] está na estrutura social. Existem lugares mais acessíveis e outros, não”, diz o Defensor Público Federal André Naves, em entrevista por telefone.

Especializado em Direitos Humanos e Sociais, Naves acredita que cidades maiores e mais acostumadas à diversidade, como Rio, São Paulo e Belo Horizonte, contam com locais turísticos com melhores condições para receber esse público.

Em São Paulo, ele cita equipamentos como o MASP, com monitoria humanizada “que gera acolhimento”, e estádios como o Allianz Parque, que tem uma sala acessível para “o autista descansar sua emotividade”, em um ambiente mais tranquilo, com cores mais suaves e, sonoramente, isolado.

Porém, as cidades também precisam ser mais amigáveis.

“Se a gente melhorar a questão de zeladoria pública, como calçadas mais acessíveis, menos sujas e melhor iluminadas, o público autista poderá caminhar [pela cidade] de forma mais independente”, sugere Naves.


Os mundos do Vitor

Após uma sequência de lançamentos de singles, Fadul lançou no ano passado seu primeiro álbum (‘Panapaná’) com músicas suas lançadas, anteriormente.

“Vitor decidiu lançar cada single sem revelar que fazia parte de um álbum completo. Ele optou por essa estratégia de lançamento, para provocar uma reflexão: geralmente não percebemos que estamos construindo nossa história até pararmos e olharmos para trás”, conta, usando a terceira pessoa.

“É uma característica do meu autismo falar sobre si na terceira pessoa. Me ajuda a pensar melhor, então não se assustem, sou eu mesmo que vos escrevo”, explicou num dos diversos posts em que aborda seu TEA.

foto: Divulgação

O anúncio do álbum foi feito durante o Acoustic Live, um show mais intimista que contou com a presença do maestro João Carlos Martins, da escritora Maria Adelaide Amaral, da cantora Zélia Duncan e, claro, do “meu amor Leandro Karnal”.

Tão variada quanto aquela plateia célebre, sua lista de inspirações musicais vai de Queen a Ludmilla, de Luisa Sonza a Madonna, passando por Bruno Mars, Lulu Santos, Gloria Groove e Anitta.

“Com a minha arte, mesclo todas essas inspirações para ter um resultado democrático que só o pop tem”, finaliza.

E dá-lhe borboletas (agora, sim, na barriga) para dar conta de tudo que vem pela frente.

Em Monemvasia, na Grécia (foto: Divulgação)


ROTEIRO FORA DO CASULO

Na Turquia, o casal conheceu Istambul, “repleta de deliciosas comidas e experiências de tirar o fôlego”, e as ruínas históricas de Izmir e Éfeso, na Região do Mar Egeu.

Na Grécia, o sítio arqueológico de Micenas, a 120 km de Atenas, fez Fadul se sentir “no coração do mundo antigo”; e em Meteora, em um sonho com “mosteiros construídos no topo de rochas incrivelmente altas”. O roteiro grego passou também pela vila de Monemvasia, Metsovo e pela capital Atenas.

A viagem dos dois seguiu em tom de conto de fadas, literalmente, na Alemanha, onde visitaram os museus de Munique, capital da Baviera, e a cidade de Schwangau, endereço do Neuschwanstein. Erguido por Luís II da Baviera, o “Rei de Conto de Fadas”, esse castelo teria inspirado a residência da Bela Adormecida, na animação da Disney.

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Neuschwanstein (foto: Pexels.com)

Na Suíça, estiveram em Zurique e Lucerna, cidade com cerca de 225 fontes, conhecida também pelo centro histórico com desenhos em suas fachadas, numa espécie de arte de rua medieval.

A viagem terminou em Portugal, que “visitamos de norte a sul, devido à turnê do Leandro”. “Foi realmente uma experiência inesquecível”, conta Fadul.

DICAS PARA VIAJAR COM AUTISTAS

* fontes: Dr. Erasmo Barbante Casella e Dra. Cláudia Romano Pacífico
  • Antecipe a viagem, visualmente, com fotos do destino e localização do hotel; e faça um diário do que vai ser visto, criando assim uma narrativa com as etapas do roteiro.
  • Verifique quais são os assentos menos barulhentos, como os próximos às saídas de emergência do avião.
  • Ao reservar um quarto, peça um que esteja em um setor menos ruidoso do hotel.
  • Prioridade de embarque é um direito garantido por lei. Alguns aeroportos contam também com apoio, como salas de espera silenciosas.
  • Em ambientes mais ruidosos, tenha um protetor auricular ou fones de ouvidos.
  • Para quem que não aceita situações novas, o neurologista Casella sugere ir para destinos que o autista já conheça, considerando, porém, os interesses dos acompanhantes.

  • Mescle os interesses dos acompanhantes com os do viajante com TEA, fazendo-o participar das escolhas.
  • Prefira visitar atrações em horários mais tranquilos. Analise também a proposta de cada atrativo: um parque com brinquedos radicais e visitantes aos gritos pode não ser uma boa ideia.
  • Considere intervalos para evitar a fadiga do excesso de passeios. “É preciso sermos flexíveis com eles, muito pacientes e darmos suporte”, recomenda Casella.
  • Tenha cuidado com objetos que possam sugar a atenção do viajante, como uso de dispositivos eletrônicos, cuja hora de largá-los deve ser negociada.
  • Procure atrativos turísticos que tenham algum serviço de apoio ao autista e se informe sobre serviços de inclusão que possam ser oferecidos.
  • Mantenha uma rotina, estabelecendo horários de comer e ir para a cama. “Isso ajuda a diminuir a ansiedade e dá mais senso de segurança”, sugere Casella.
  • “O autista tem muito apego ao combinado, ao rotineiro”, por isso, cumpra com o que foi programado. Caso contrário, como explica a dra. Cláudia, isso pode desencadear uma crise ou “um comportamento disruptivo”, como chorar, deprimir ou ficar mais agressivo.
  • A conexão sensorial pode ser feita, por exemplo, com outros objetos sensoriais de manuseio para tranquilizar o viajante.

“O apego é maior porque dá segurança para o autista.”

Cláudia Romano Pacífico, doutora em Psicologia Experimental


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