Podia até ter sido uma viagem aventureira de dois jovens argentinos, em busca de chicas latinas (o que foi, de fato, a princípio).
Mas, ao final de quase sete meses por la carretera, a viagem terminaria em Caracas como a (re)descoberta de uma América Latina inóspita que, tal qual os conhecidos estereótipos, só se sabia em livros.
Há exatas duas décadas, o diretor brasileiro Walter Salles estreava nos cinemas brasileiros o longa Diários de Motocicleta, baseado nos relatos de viagem de Ernesto Guevara de la Serna, o Che, e seu amigo Alberto Granado Jiménez.
O longa é baseado nos diários de viagem do quase médico Guevara e do bioquímico cordovês Granado, respectivamente, interpretados pelo mexicano Gael García Bernal e pelo argentino Rodrigo de la Serna.
Em janeiro de 1952, Guevara, aos 23 anos, e Granado, com quase 30, planejaram percorrer oito mil quilômetros do continente, em quatro meses. Mas como todo deslocamento terrestre pela América Latina, a viagem foi no seu ritmo e só chegaria ao fim, seis meses e 12 mil quilômetros depois, em Caracas, na Venezuela.
Os dois saíram de Buenos Aires, na Argentina, a bordo de uma capenga Norton 500, La Poderosa, como a motocicleta de Granado era conhecida, em um roteiro improvisado que passaria pelo Chile, em destinos como a Patagônia e o Deserto do Atacama, e pela amazônia peruana.
Mais do que fazer turismo mochileiro, a dupla escutaria, atenta, as vozes esquecidas de um continente tão acostumado a esquecer sua gente, como habitantes de povoados distantes, mineiros explorados, camponeses, indígenas e enfermos.
Ao final da viagem, em julho daquele mesmo ano, o provincialismo diminuto dava lugar a uma América Latina maiúscula.
E com essa monumentalidade, geográfica e social, Salles levou às telonas um road movie que revela uma América Latina, ao mesmo tempo, tão próxima e tão distante para os brasileiros, cujas fotografias em preto e branco são uma espécie de registro presente de um passado-futuro de um continente ainda esquecido.
Por isso, em cerca de duas horas de filme, Diários de Motocicleta é tão múltiplo quanto o próprio continente retratado.
Tem direção de um brasileiro (Walter Salles), produção executiva assinada por um estadunidense (Robert Redford) e roteiro escrito por um porto-riquenho (José Rivera).
Sem falar no elenco com artistas do México, Argentina, Chile e Peru.
Assim como contou na época da estreia do longa em Buenos Aires, o diretor e a equipe refez três vezes a viagem da dupla Guevara/Granado, “duas para buscar as locações, e a terceira para filmar”, disse Salles para o jornal argentino La Nación.
Entre os quase 30 prêmios conquistados, entre eles, um BAFTA (melhor filme em língua não-inglesa), está o Oscar de Melhor Canção Original (Al otro lado del río, do uruguaio Jorge Drexler).
Conheça os cenários em ‘Diários de Motocicleta’
* as datas e os locais seguem a cronologia do filme de Walter Salles
Diários de Motocicleta foi rodado em destinos de quatro países latino-americanos:
Argentina (Buenos Aires. Miramar, San Bernardo, Bariloche, Lago Frías, Villa La Angostura e Mendoza; Chile (Temuco, Lautaro, Freire, Valparaíso, Chuquicamata, Deserto do Atacama); Peru (Machu Picchu, Ollantaytambo, Cuzco, Lima, Iquitos e Santa María); e Cuba ( La Habana).
13 de janeiro de 1952
Miramar – Argentina
Após uma caótica e emocionada partida de Buenos Aires, Guevara e Granado fazem uma primeira parada em Miramar, cidade na província de Buenos Aires, a 450 quilômetros da capital argentina, onde Guevara foi visitar sua primeira namorada, María del Carmen “Chichina” Ferreyra.
29 de janeiro de 1952
Piedra del Aguila – Argentina
É nessa pequena localidade de Neuquén, conhecida por suas formações rochosas e rios piscosos, que a dupla tem um dos inúmeros acidentes com La Poderosa, o meio de transporte utilizado no início da viagem, até sua “morte” total, no Chile.
31 de janeiro de 1952
San Martín de los Andes – Argentina
Ao completar quase um mês de estrada e pouco mais de dois mil quilômetros rodados, Guevara e Granado chegam a essa cidade, encravada na cordilheira dos Andes, na província de Neuquén.
“O que é que se perde ao cruzar uma fronteira?”
Carta de Ernesto Guevara para a mãe Celia de la Serna
15 de fevereiro de 1952
Lagos Frías – Argentina
É nesse lago de origem glaciar, próximo ao Chile, que Guevara cruza sua primeira fronteira internacional, rumo ao norte do continente.
VEJA TAMBÉM: “7 travessias imperdíveis na América do Sul”
18 de fevereiro de 1952
Temuco – Chile
Já em território chileno, Guevara entra no El Diario Austral e consegue convencer a Redação do jornal a fazer uma matéria sobre a viagem com “dois dos mais prestigiosos especialistas em lepra da América do Sul”, como dizia o texto exagerado.
26 de fevereiro de 1952
Los Angeles – Chile
É nessa cidade no centro-sul do país, na província de Biobío, que os dois dispensam La Poderosa, por conta das condições mecânicas da moto. Dali, seguem a pé, de carona e de todas as outras formas possíveis de se viajar pela América Latina.
7 de março de 1952
Valparaíso – Chile
Nessa cidade portuária, a dupla completou quase 3.600 quilômetros de viagem.
Entre os dias 11 e 15 de março, Guevara e Granado percorrem as regiões do Atacama e Antofagasta, onde Che se sensibiliza com a situação degradante dos mineiros chilenos da Mina de Chuquicamata.
Ao sair da mina, o estudante de Medicina sentiria mudanças na viagem. “Ou éramos nós?”, questionou.
Já entre os dias 2 e 5 de abril, com quase sete mil quilômetros de estrada acumulados, chegam aos endereços mais famosos dos incas, a antiga capital Cuzco e o santuário de Machu Picchu.
12 de maio de 1952
Lima – Peru
É na capital peruana que Guevara e Granado conhecem Hugo Pesce, prestigiado médico especialista em lepra, que os envia ao leprosário em San Pablo, na Amazônia peruana.
25 de maio de 1952
Pucallpa, no centro-leste do Peru, é o ponto de partida para uma longa viagem de cinco dias de barco até San Pablo, onde os dois permanecem como voluntários por três semanas e Guevara comemora seu 24º aniversário.
No dia 22 de junho, estão na região de Letícia, a cidade colombiana mais austral, na Tríplice Fronteira entre a Colômbia, Peru e Brasil.
No dia 26 de julho de 1952, aquelas duas vidas se despedem em Caracas, capital da Venezuela. Granado e Guevara só voltariam a se reencontrar, oito anos depois. O primeiro como pesquisador, em Cuba, e o segundo, já como o comandante Che Guevara.
“Eu já não sou eu. Pelo menos, não o mesmo eu interior”
Ernesto Guevara
LEIA TAMBÉM: “Tendências de viagens na América Latina”
Seja o primeiro a comentar