Esta não é uma história apenas de mortes, mas também de renascimentos.
Após decolar da capital uruguaia com 40 passageiros e 5 tripulantes, o turboélice bimotor Fairchild deveria fazer uma viagem de cerca de três horas, aproximadamente, entre Montevidéu e Santiago. Mas os passageiros sobreviventes dos Andes só voltariam para casa mais de dois meses depois.
A aeronave da Força Aérea do Uruguai que tinha sido fretada para levar jovens jogadores de rugby do Old Christianss Rugby Club do colégio Stella Maris, na capital uruguaia, perdeu velocidade e se chocou contra montanhas andinas, partindo-se em dois.
Neste 13 de outubro são lembrados os 53 anos do acidente.

Aos pés das serras de San Hilario, entre os vulcões Tinguiririca e Sosneado, a quase 4 mil metros de altitude, o F571 caiu, às 15h30, no Valle de las Lágrimas, no meio da imensidão andina.
Dos 45 passageiros, apenas 16 sobreviveram. Foram 72 dias sem banho nem troca de roupa, a espera de um resgate que parecia nunca chegar.
Nos dias seguintes, os sobreviventes dormiriam não só com esperança, mas também ao lado da morte. Os mortos dariam vida aos que insistiam em viver.
Sobreviventes dos Andes
Para o uruguaio Roy Harley, um dos sobrevivente dos Andes, mais do que fome, frio e sede, o mais difícil foi a incerteza.
“Era terrível não saber se íamos estar vivos na manhã seguinte”, conta Harley para o Viagem em Pauta, sobre os 72 dias a espera de um resgate.

Álvaro Mangino é outro sobrevivente.
Em depoimento ao jornalista Pablo Vierci, autor do potente A Sociedade da Neve, livro que deu origem à série homônima da Netflix, o sobrevivente-aniversariante conta que precisou se virar para não ter que depender dos outros, que “tinham emergências demais a resolver para ficar carregando um inválido nas costas”.
Entre as medidas tomadas, Mangino chegou a dormir nas redes penduradas no interior do jato, reservadas para os feridos mais graves.
“O frio era insuportável, de dez a quinze graus a menos que embaixo [das redes], onde havia o calor dos corpos apertados uns contra os outros”, relata.
Outro momento delicado de sua história nas montanhas foi o de comer carne humana, a decisão “mais difícil que tomei em toda a minha vida”. Como conta o próprio Mangino, ele era um dos cortadores de carne.

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No oitavo dia, após o acidente, os jovens começaram a fazer os primeiros cortes nos corpos com cacos de vidros na pele endurecida pelo gelo. Os mortos eram a esperança para os vivos que, para evitarem a traumática possibilidade de se alimentarem de alguém conhecido, colocaram os corpos do lado de fora do avião, a fim de não serem identificados.
Atualmente, após mais de três décadas sem tocar no assunto do acidente, Mangino, produtor de vinhos e com quatro filhos e netos, dá palestras sobre a experiência nos Andes. Até a publicação do livro de Vierci, em 2008, já tinha estado de volta sete vezes ao local do acidente, algumas delas com sua família.
“Éramos máquinas de sobrevivência, sem pensar muito no que estava acontecendo. A gente tinha que seguir sempre adiante. Não chorávamos pelos amigos mortos porque isso nos fazia perder a energia. Tínhamos que sobreviver sem nos importar com o que estava acontecendo”, relata Harley, em entrevista para o Viagem em Pauta.

História sem fim
Mais de 50 anos depois, e após uma infinidade de filmes, documentários e livros, o trágico acidente aéreo nos Andes voltou à pauta com o impactante ‘A Sociedade da Neve’, em cartaz na Netflix.
Com direção de J. A. Bayona (‘O Impossível’ e ‘O Orfanato’) e baseado no livro homônimo escrito por Pablo Vierci, o filme impressiona pela reconstituição dos registros fotográficos da época que ganham vida com os atores do elenco.
“É muito bom, muito fiel à história que vivemos [nos Andes]. Bayona soube interpretar nossos relatos e transformá-los nessa história maravilhosa”, descreve Harley, que elogia também a fotografia e a trilha sonora, e acredita que será “um grande filme em nível mundial”.
Não é à toa que, em uma semana de estreia, ‘A Sociedade da Neve’ chegou a ser o longa mais visto na plataforma de streaming .

Tanto o livro de Vierci como o filme de Bayona são muito mais do que um relato dramático sobre a morte. Seus ‘A Sociedade da Neve’ são uma ode à vida, nessa que já foi considerada pela National Geographic a maior história de sobrevivência dos últimos 100 anos.
“É preciso ter em conta que, a quase quatro 4 mil metros de altitude, quando o mundo inteiro te abandonou, você tem que aceitar que o destino de morrer ou viver depende de você.”, diz Gustavo Zerbino para a reportagem do Viagem em Pauta.
Zerbino se refere à Sociedade da Neve, como o grupo sobrevivente apelidou a rotina que tiveram que organizar, nos mais de dois meses de espera por um resgate que, cada vez mais, parecia impossível.
No interior da fuselagem, um espaço de 6,5 metros de comprimento por três de largura, os sobreviventes dormiam abraçados, em curtos intervalos para evitar o próprio congelamento, devido à temperatura externa de -30 °C.
As poltronas serviam de aquecimento num ambiente em que as portas eram a única maneira de se protegerem do frio. A água disponível era gelo derretido num funil e a pouca comida se resumia a conservas, bolachas e chocolates.
“Vivíamos no caos total, rodeados pela morte. Viver uma hora a mais era um loucura. Nosso único objetivo era viver, fazíamos o que era preciso para transformar os problemas em oportunidade para viver”, descreve Zerbino.

Zerbino lembra também o “modo montanha” que tiveram que acionar para unir os sobreviventes.
“O mundo diz que foi um milagre. Mas era uma amizade que tivemos que construir em uma sociedade solidária onde as regras e normas apareciam por necessidade”, diz.
Leia entrevista exclusiva para o Viagem em Pauta:
[Eduardo Vessoni] Para alguns, como Pedro Algorta, o acidente hoje em dia é “apenas lembranças”, inclusive ele chegou a passar por um longo processo de amnesia. Para o senhor, qual a lembrança mais fresca do que aconteceu há exatos 50 anos?
[Gustavo Zerbino] A lembrança mais fresca que tenho é o amor que vivemos na montanha, tenho gratidão por tudo aquilo. Por isso subi com minha família para agradecer aos meus amigos que descansam ai.
Levei terra e água do Uruguai e água para deixar nas tumbas, um sacerdote rezou uma missa e as nuvens pareciam em forma de anjos. As montanhas estavam em festa para nos receber.
Foi um momento de gratidão e depois dormimos no mesmo lugar onde caiu o avião. É um lugar difícil de dormir porque não há oxigênio. Cantamos no mesmo lugar onde a dor e angústia eram insuportáveis. Foi mágico.
Quão importante foi a organização de uma micro sociedade como a sociedade da neve para a sobrevivência de vocês?
Você tem que assumir o compromisso de aceitar o destino.
É preciso ter em conta que, a quase 4 mil de altitude, quando o mundo inteiro te abandonou, você tem que aceitar que o destino de morrer ou viver depende de você.
Entramos em um modo montanha, tivemos que nos unir.
O mundo diz que foi uma tragédia, um milagre. Mas era amor, uma amizade que tivemos que construir em uma sociedade solidária onde as regras e normas apareciam por necessidade.
Vivíamos no caos total, rodeados pela morte. Viver uma hora a mais era um loucura.
Nosso único objetivo era viver, fazíamos o que era preciso para transformar os problemas em oportunidade para viver.

Quando o senhor pôde, por fim, dizer que tudo tinha acabado?
Pelo contrário, quando voltei ao mundo que vivemos, fiz uma grande esforço para não esquecer o que eu tinha vivido e aprendido no vale.
Eu revivo aquilo no coração como uma lembrança, como uma experiência de andar de bicicleta depois de muitos anos sem praticar.
Subimos, caímos, mas quando deixamos o medo, conseguimos o equilíbrio outra vez. Conforme avançamos, deixamos de cair e voltamos a avançar. A vida é isso.
A diferença entre o fracasso e o sucesso é como você direciona a sua energia. Nosso único objetivo era viver mais um segundo.
Tivemos que escolher entre morrer ou viver. E escolhemos a vida.
Na montanha, vivíamos cada dia como se fosse o último, desfrutávamos plenamente, apesar da dor e da esperança, fomos felizes plenamente porque conseguíamos expandir o umbral da dor, do medo.
No livro “A Sociedade da Neve”, o autor diz que o senhor era um dos talentos na terapia do humor. Como manter o humor em uma situação tão extrema como aquela?
A única coisa séria da vida é o senso de humor. No momento mais trágico, a catarse do riso é o que permite atravessar, dignamente, sem traumas.
Saber rir de si mesmo e dos outros é algo que te permite atravessar aquilo, dignamente, era um humor duríssimo, era humor ácido, era transformar aquilo em comédia.
De manhã, pedíamos para Javier, o único dos sobreviventes que já morreu [esta entrevista é de 2022], caminhar sobre o gelo e todos nós apostávamos em que momento ele ia escorregar. E não parávamos de rir. Não riam porque me dói muito, ele pedia.
Javier se deu conta depois que isso nos fazia feliz e todo dia repetia [o escorregão] para nos alegrar. Era o sacrifício, como de um palhaço, para dar alegria para seus companheiros de viagem.
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