‘Não chorava pelos mortos para não perder a energia’, diz sobrevivente dos Andes

Para Roy Harley, sobrevivente dos Andes, mais do que fome, frio e sede, o mais difícil foi a incerteza.

“Era terrível não saber se íamos estar vivos na manhã seguinte”, conta Harley para o Viagem em Pauta, sobre os 72 dias a espera de um resgate.

Esse uruguaio de Montevidéu era um dos 40 passageiros da viagem entre a capital uruguaia e Santiago, no Chile, cujo turboélice bimotor Fairchild caiu no Valle de las Lágrimas, na sexta-feira 13 de outubro de 1972.

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foto: JP Laffont/Reprodução)

A aeronave tinha sido fretada para levar jogadores de rugby do Old Christianss Rugby Club do colégio Stella Maris, escola em Carrasco, bairro de classe média alta em Montevidéu.

A viagem deveria durar três horas, aproximadamente. Mas os sobreviventes só voltariam para casa mais de dois meses depois, após 72 dias sem banho nem troca de roupa, a espera de um resgate que parecia nunca chegar.

Dos 45 passageiros, apenas 16 sobreviveram.


Sobrevivente dos Andes

Mais de 50 anos depois, e após uma infinidade de filmes, documentários e livros, o trágico acidente aéreo nos Andes voltou à pauta com a estreia do impactante ‘A Sociedade da Neve’, em cartaz na Netflix.

Com direção de J. A. Bayona (‘O Impossível’ e ‘O Orfanato’) e baseado no livro homônimo escrito por Pablo Vierci, o filme impressiona pela reconstituição dos registros fotográficos da época que, no longa de mais de duas horas de duração, ganham vida com os atores do elenco.

“É muito bom, muito fiel à história que vivemos [nos Andes]. Bayona soube interpretar nossos relatos e transformá-los nessa história maravilhosa”, descreve Harley, que elogia também a fotografia e a trilha sonora, e acredita que será “um grande filme em nível mundial”.

Não é à toa que ‘A Sociedade da Neve’ já é o filme mais visto na plataforma de streaming em uma semana de estreia.

foto: Netflix/Divulgação

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Tanto o livro de Vierci como o filme de Bayona são muito mais do que um relato dramático sobre a morte. Seus ‘A Sociedade da Neve’ são uma ode à vida, nessa que já foi considerada pela National Geographic a maior história de sobrevivência dos últimos 100 anos.

“É preciso ter em conta que, a quase quatro 4 mil metros de altitude, quando o mundo inteiro te abandonou, você tem que aceitar que o destino de morrer ou viver depende de você.”, diz Gustavo Zerbino para a reportagem do Viagem em Pauta.

Zerbino se refere à Sociedade da Neve, como o grupo sobrevivente apelidou a rotina que tiveram que organizar, nos mais de dois meses de espera por um resgate que, cada vez mais, parecia impossível.

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foto: Reprodução/Roy Harley

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Modo montanha

No interior da fuselagem, um espaço de 6,5 metros de comprimento por três de largura, os sobreviventes dormiam abraçados, em curtos intervalos para evitar o próprio congelamento, devido à temperatura externa de -30 °C.

As poltronas serviam de aquecimento num ambiente em que as portas eram a única maneira de se protegerem do frio. A água disponível era gelo derretido num funil e a pouca comida se resumia a conservas, bolachas e chocolates.

“Vivíamos no caos total, rodeados pela morte. Viver uma hora a mais era um loucura. Nosso único objetivo era viver, fazíamos o que era preciso para transformar os problemas em oportunidade para viver”, descreve Zerbino.


“Entramos em um modo montanha, tivemos que nos unir. O mundo diz que foi um milagre. Mas era uma amizade que tivemos que construir em uma sociedade solidária onde as regras e normas apareciam por necessidade.”

Gustavo Zerbino


Para Harley, aqueles jovens esperançosos eram como “máquinas de sobrevivência” que não podiam sequer raciocionar no que estava acontecendo. “A gente tinha que seguir sempre adiante”, diz.

“Não chorávamos pelos amigos mortos porque isso nos fazia perder a energia. Tínhamos que sobreviver sem nos importar com o que estava acontecendo”, lembra.

A polêmica decisão de se alimentarem dos companheiros mortos era só uma questão de… fome.

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Sobreviventes de volta ao Valle de las Lágrimas (foto: Mauricio Guerra)

Os primeiros cortes seriam servidos, a partir do oitavo dia, após a queda da aeronave. Para isso, foram usados pedaços de vidro para cortarem a pele já endurecida pela rigidez do gelo.

Em coletiva, em Montevidéu, dias depois do resgate, o sobrevivente Alfredo Delgado Salaberry esclarecia que o ato tinha sido “uma comunhão íntima” que os ajudou a sobreviver.


Harley foi um dos que organizou a primeira expedição, juntamente com Tintín e Carlitos, que tentaria procurar ajuda, após a avalanche que matou outros sobreviventes, naquele mesmo mês de outubro. Assim como descreve o sobrevivente Fernando Parrado, em ‘A Sociedade da Neve’, um “acidente dentro do acidente”.

“A gente tinha muito medo de nos afastar. O avião era o refúgio que nos cuidava e protegia das inclemências da montanha. Queimamos as pestanas tratando de saber onde estávamos”, conta Harley.

Gustavo Zerbino, no local do acidente (foto: Arquivo Pessoal)

Os sobreviventes ouvidos pela reportagem foram unânimes ao elogiarem a nova produção da Netflix, um trabalho respeitoso que teve o cuidado de evitar o sentimentalismo gratuito para atrair o público.

“O filme consegue mostrar exatamente o que vivemos na montanha. Que as pessoas sintam e se conectem com o que estivemos vivendo ali [em 1972]. É muito positivo para essa época que estamos vivendo nesse mundo de guerras, soberbia e arrogância”, descreve Zerbino.

Porém, esse sobrevivente faz questão de lembrar que os protagonistas são aqueles que morreram no acidente, “que nos ajudaram a sobreviver”.

“O filme fecha uma etapa, mas vai conectar o mundo inteiro pela história de sobrevivência mais importante do século XX”, finaliza Zerbino.

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